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terça-feira, 10 de abril de 2012

Psicose: a morte como espetáculo

Psicose: a morte como espetáculo


Na semana passada falei um pouco sobre Hitchcock. Uma pinceladinha! Existem centenas de livros sobre seu trabalho e não dá para resumir tudo numa crônica, e, aliás, crônicas muito longas desanimam o leitor. Volto a ele para falar de uns pontos que acho importantes.
É muito diferente trabalhar o suspense em imagens do que na escrita. No entanto, para quem escreve ajuda bastante observar cuidadosamente o trabalho de um grande mestre do suspense, e nesse quesito Hitchcock foi realmente o mestre. Também trabalhou muito bem a transferência da culpa, mas esta fica para uma outra investida.
“Psicose” é com certeza seu filme mais conhecido e estudado. Hoje, a violência tomou conta das telas e muitas vezes é feita de forma grosseira, mas quando “Psicose” foi filmado, a célebre sequência do assassinato de Marion (Janet Leigh) mostra um momento especial do cinema de medo e mistério. Depois de vermos a faca, Marion se despede da vida: braço esticado, mão acima do rosto, espalmada, não mais se defendendo dos golpes, mas já escorregando, submergindo na zona escura em que se aloja o seu corpo quase inerte.
Tudo se faz na passagem da luz à sombra. Uma sucessão rápida de fragmentos compõe na mente do espectador todo o horror de uma retaliação que não se mostra em nenhum plano. Ao final da sequência, lá está a vítima, sozinha, no estertor da vida.
Poderíamos dizer que é simplesmente mais um quadro na galeria de mulheres assassinadas no cinema, situação limite em que se pode decidir a reputação de um cineasta. E foi esta cena que fez os estudiosos do cinema afirmarem ser um momento de pura arte inspiração!
Nela, a morte é mostrada como um espetáculo. Por sua intensidade e duração, a morte de Marion é um momento especial. É difícil e desafiadora a reprodução, pela imagem em movimento, do instante sagrado de passagem da vida para a morte, quando esse momento único, de solidão, intransferível, se faz presente na tela.
A exibição da morte, do sexo e do crime faz parte do que os autores dos famosos Cahiers Du Cinema, chamaram de “cinema da crueldade”. A experiência do sexo, morte e violência dirigida ao próprio olho é também um ponto focal de atração das plateias, ansiosas por incursões simuladas em zonas de risco.
A experiência do medo assegurado é constitutiva, e marca a afinidade eletiva do cinema com a violenta ruptura da ordem moral que os espectadores simulam temer, mas desejam, num sistema de projeções que o cineasta incorpora  — coisas que nem Freud explica e que gênios captam — e que consegue arrancar do fundo do inconsciente do espectador cada emoção. E mantê-los atentos até o final.
Caminhar nessa zona de risco, ser um ás na modulação dos sentimentos da plateia diante da exposição do que está implicado no desejo de cada personagem (e de cada espectador), é uma condição ímpar que fez de Hitchcock o mestre que ele foi.
No seu tempo, ao surgirem as novas linguagens no cinema europeu de autor, Hitchcock manteve-se fiel ao cinema de entretenimento, usando o suspense para captar o espectador, usando a fórmula de crime, investigação e solução. Além da cena mencionada, foi mestre no suspense psicológico, apoiado na pura dimensão do olhar, quando o que parece ser uma configuração de rotina, a paisagem, a rua ou a casa de todo dia, de repente se revela uma anomalia, um ponto de incongruência que atiça a percepção e aguça as expectativas, suscita indagação. O insólito dentro do cotidiano faz da cena inocente uma sugestão sinistra, produz insegurança e vontade de decifrar.
Para criar suspense, o escritor usa palavras, o cineasta usa posições de câmera, gestos e olhares de personagens. O objetivo é o mesmo. Captar as emoções e a atenção do espectador/leitor.
Até a próxima!

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