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domingo, 20 de maio de 2012

Noir malandro

Noir malandro

Marcos Rey, pseudônimo de Edmundo Donato, foi um escritor de fôlego. São Paulo foi a capital inspiradora desse escritor de múltiplas mídias e gerações: são mais de cinquenta livros, entre romances, contos, novelas e ensaios. Escreveu crônicas e contos, se destacou escrevendo romances para o público juvenil e escreveu também várias obras literárias para adultos. Durante os anos 1970 foi roteirista de diversos filmes do gênero pornochanchada, produzidos na Boca do Lixo, em São Paulo, como “As Cangaceiras Eróticas” e “O Inseto do Amor”.
Sempre gostei das histórias de Marcos Rey. Meu personagem Alyrio Cobra, como ele, é um paulistano que transita no cenário da cidade de São Paulo. O escritor faleceu no dia 1º de abril de 1999, aos 74 anos. Foi cremado e, um mês depois, sua esposa sobrevoou o centro da cidade com um helicóptero, espalhando as cinzas sobre São Paulo e realizando assim a reunião eterna de Marcos Rey com a metrópole que foi a grande personagem de toda a sua obra.
Nos tempos em que a Livraria Cultura do Conjunto Nacional era um local de encontro de escritores, todos os sábados, lá pelas 11 da manhã, Marcos Rey batia ponto por lá. Havia um grupo muito grande que frequentava o local do qual ele fazia parte, sempre animado, contando detalhes de suas aventuras literárias.
Rey usou a fórmula policial, e se poderia dizer que foi o precursor de Jô Soares, com seu policial cheio de ironia. Beirando o cronista, mas não o sendo, consegue em seus livros retratar o cotidiano paulistano de meados do século passado; na verdade, usa e abusa do humor, tornando a leitura de sua obra ainda mais interessante. Seus protagonistas são figuras típicas da cidade e vale a pena um olhar sobre eles.
Em sua larga obra, Malditos Paulistas é um ótimo exemplo, um romance que mistura a veia policial e o picaresco. A narrativa está centrada na trajetória singular de Raul, um carioca na faixa dos trinta anos que já fez muita coisa na vida, mas em nenhuma de suas atividades logrou sucesso. Desiludido, decide tentar a sorte em São Paulo, onde amplia suas experiências profissionais: trabalha como instrutor de natação, figurante de novela, garçom de cantina no Bixiga. Um anúncio classificado “Precisa-se de motorista” muda sua sorte na capital paulista. Ele vai trabalhar de motorista particular para Duílio Paleardi, que mora numa mansão do Morumbi. Ali, Raul se ocupa de flertes fortuitos com as empregadas e com a patroa, até que encontra, na garagem da mansão, uma marionete vestida de Carmem Miranda. A descoberta promove uma virada nos rumos da história, transformando-a numa narrativa vertiginosa em torno das investigações de Raul sobre os negócios escusos de Paleardi.
Num “noir” tipicamente brasileiro, Raul é o protótipo do pequeno malandro. Depois que lemos no primeiro parágrafo do livro o anúncio do emprego em que “dispensam-se referências”, a primeira dica sobre a personalidade de Raul aparece logo no segundo, quando ele pensa: “O emprego é para mim”.
A alusão deixada em aberto nessa primeira passagem é preenchida a seguir, quando Raul nos conta resumidamente seu currículo profissional: salva-vidas, cabo eleitoral, motorista, garçom, extra de telenovela, instrutor de natação, não sem antes avisar que não é motorista por vocação: “Meu sonho brasileiro, acalentado em mil camas e tipos de colchões, era ter um belo emprego público, que atrelasse meu pequeno destino ao glorioso futuro da Nação, mas à falta de um curso ginasial completo, cartuchos e pistolões, meu nome nunca foi impresso no Diário Oficial.”
A afirmação do “sonho brasileiro” de um “belo emprego público…” é intercalada pelo aposto de que esse sonho era “acalentado em mil camas e tipos de colchões”, o que insere o caráter errante da personagem e seu aspecto de volubilidade sexual — muitas mulheres, apartamentos no Guarujá e bares ao redor do porto, tudo isso envolve o personagem, que não cessa sua busca por respostas e por justiça (pessoal, claro).
No decorrer da história, o protagonista vai nos oferecendo outras características, sempre mobilizando algum recurso cômico. Por várias vezes Raul tem relações sexuais de maneira utilitária, ou seja, para conseguir vantagens; também ensaia alguns passos como chantagista, mas percebe-se que não é um contraventor real — só quer ver se “descola algum”. Mesmo ao chantagear contrabandistas Raul não deseja mexer com armas, ou seja, até em atividades “não louváveis” ele não quer se arriscar muito, É o malandro típico, que mesmo na contravenção só quer aquilo que não seja perigoso — atividades que não requerem o uso da violência, mas somente daquilo que Raul sabe que tem: “cabeça, picardia, manha e cancha”.
Claro que ele gostaria muito mais de ver seu nome no Diário Oficial numa nomeação, com um belo salário, ou seja, numa boa “mamata”. Usando a fórmula policial e criando um fantástico suspense, Marcos Rey nos mostra a alma do pequeno malandro que, em não descolando uma “mamata” do Estado, se deixa envolver pelo mundo das mansões do Morumbi onde as pessoas não são tão corretas assim, e de apartamentos no Guarujá, reduto dos ricos em meados do século passado.
Até a próxima!

terça-feira, 15 de maio de 2012

Nem só de crimes vive a literatura policial

Nem só de crimes vive a literatura policial

Quem gosta de História e História da Arte, especialmente a italiana, e mais especificamente a de Veneza, não pode deixar de conhecer o investigador Guido Brunetti, criado pela norte-americana Donna Leon: nem só de crimes vive a literatura policial.
Nascida em Nova Jersey (1942), professora e escritora, em sua juventude Donna viajou para a Itália, onde estudou nas cidades de Perugia e Siena. Depois de trabalhar como guia turística em Roma, teve vários empregos como professora em escolas na Europa e Ásia. Desde 1981 vive em Veneza.
Senhora de uma escrita cinematográfica, com um fantástico domínio dos diálogos, Donna Leon é, além de tudo, uma mulher cultíssima. Seus livros contêm, além da fórmula policial muito bem aplicada, uma agradabilíssima lição de História e História da arte, tendo em todos eles múltiplas referências à ópera e à literatura. Trazem também um manancial inesgotável de receitas culinárias da cozinha mediterrânea mais sofisticada, e um precioso roteiro do melhor que há em Veneza e não consta de nenhum guia. Donna Leon conhece Veneza como a palma da sua mão, e se compraz em descrevê-la bem, com seus itinerários mais secretos.
Esta familiaridade não é de se admirar: sendo norte-americana, trabalhou muito tempo em Veneza, ensinando literatura inglesa. O protagonista de seus livros não poderia viver em outro local. Guido Brunetti está por volta dos 40 anos, tem dois filhos adolescentes e é casado com uma professora universitária. Os pais dela são riquíssimos, vivem de negócios financeiros algo obscuros e frequentam a alta aristocracia de Veneza e do restante da Itália, enquanto Guido Brunetti veio de classes mais baixas, é formado em direito, recebe um magro salário como policial e não tem muita paciência para as festas dos sogros. No entanto, são essas festas que proporcionam à autora a oportunidade de escrever sobre os fantásticos palácios e locais requintados de Veneza.

Guido e sua esposa se dão muito bem. Ele adora os filhos e tem um desprezo absoluto pela classe política italiana que considera, sem exceção, atolada na mais vil corrupção — uma corrupção que extravasa todos os poderes, inclusive o da polícia.
Morte no Teatro La Fenice foi a estreia no Brasil do charmoso Guido Brunetti, um comissário instintivo, ágil e cordial, funcionário exemplar da polícia de Veneza. Nesse livro, Brunetti investiga o caso do maestro Wellauer, encontrado morto em seu camarim depois de reger o primeiro ato de uma famosa ópera de Verdi.

Em Fardo da Nobreza, os jardins de uma casa abandonada em uma pequena vila na Itália permaneceram intocados por cinquenta anos. Quando o novo proprietário assume a propriedade e dá início a uma reforma, um túmulo macabro vem à tona. Animais, fungos e bactérias fizeram seu terrível trabalho, e o cadáver humano encontra-se em estado avançado de decomposição, o que impede o reconhecimento do corpo. Um anel valioso torna-se a principal pista desse mistério, que leva o comissário Guido Brunetti ao coração da aristocracia veneziana, uma família que ainda sofre com o desaparecimento do filho e cujos segredos perturbadores remontam à Segunda Guerra Mundial.
Enquanto eles dormiam se passa no início da primavera em Veneza. Tomado pelo tédio, o comissário Guido Brunetti já perdia as esperanças de qualquer ação, até que recebe uma estranha visita. Mais uma vez retratando as peripécias desse atípico detetive — amante da boa mesa e da literatura e casado com uma intelectual filha de um conde veneziano — em meio a canais, praças e vielas que ele conhece como ninguém, Donna Leon conduz os leitores aos subterrâneos de uma misteriosa organização religiosa, protegida por figurões da cidade. Brunetti precisará de muita cautela e astúcia para aplacar a influência dos poderosos, inclusive de seu chefe, e proteger uma boa alma.
Se não fosse pelo feriado de Ferragosto, que todos os anos inunda Veneza de turistas, a notícia de um travesti encontrado morto num terreno baldio certamente se tornaria o assunto mais comentado da cidade. Além disso, uma onda de calor faz os moradores se trancarem em suas casas, na segurança dos aparelhos de ar-condicionado, e o crime fica diluído entre os muitos outros escândalos que estampam as capas dos jornais. Para o chefe da polícia de Veneza, trata-se de um caso simples, banal: o michê fora assassinado por um cliente insatisfeito com os serviços prestados.
Em Vestido para morrer, apenas o comissário Guido Brunetti suspeita de algo maior por trás do crime. Quando o corpo é identificado como sendo o de um diretor de banco, Brunetti se vê às voltas com uma conspiração que envolve algumas das figuras mais importantes da cidade, e novos cadáveres não tardam a aparecer.
Num chuvoso domingo de inverno, a arqueóloga americana Brett Lynch recebe uma inesperada visita no apartamento que divide com a namorada — a cantora lírica Flavia Petrelli —, e acaba brutalmente espancada. Em Acqua Alta, o comissário Guido Brunetti, velho conhecido da diva do Scala, assume o caso e, com a ajuda de um pintor e connoisseur, desvenda os códigos internos do mercado de antiguidades e uma complexa rede de negociações espúrias. Por trás de tudo, paira a sombra da Máfia siciliana, que parece influenciar todos os setores da economia italiana. Como veem, nem só de crimes e cadáveres vive a literatura policial!
Até a próxima.

terça-feira, 8 de maio de 2012

Jaime Bunda, agente secreto

Jaime Bunda, agente secreto

Nas tantas crônicas que escrevi sobre romances policiais, mencionei “a grande virada”. Vou relembrá-la. Desde que foi criada a fórmula policial, críticos literários de peso sempre classificaram os romances policiais como literatura de segunda linha, mas jamais acreditei que existam gêneros de primeira ou segunda linha: acho que existe literatura ótima, excelente, boa, regular ou péssima, dependendo unicamente da habilidade de cada autor, independente do gênero que praticam.

Em relação ao policial, em 1980 ocorreu a grande virada. Umberto Eco, o maior estudioso de Idade Média na Europa, aproveitou a fórmula em seu livro O nome da rosa. Já não se podia afirmar que usá-la era sinônimo de escrever romances de segunda linha.
No novo milênio, Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos, conhecido como Pepetela, (Benguela, 29 de Outubro de 1941), escritor angolano vencedor do prêmio Camões de 1997, usou a fórmula para escrever sobre os problemas da sociedade angolana.

Toda a obra de Pepetela reflete sobre a história contemporânea de Angola e os problemas que a sociedade angolana enfrenta. Durante a longa guerra, Pepetela, angolano de ascendência portuguesa, lutou juntamente com o MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola) para libertação da sua terra natal. Seu romance Mayombe retrata as vidas e os pensamentos de um grupo de guerrilheiros durante a guerra; Yaka segue a vida de uma família colonial na cidade de Benguela ao longo de um século; e A Geração da Utopia mostra a desilusão existente em Angola depois da independência. A história angolana antes do período colonial também faz parte das obras de Pepetela, e pode ser lida em A Gloriosa Família e Lueji  — é nestes abismos sociopolíticos do país africano que Pepetela põe a mira de cada um de seus tantos livros publicados em mais de 30 países.
No novo milênio, também ele mergulhou na fórmula. Criou o personagem Jaime Bunda, que arrastando sua avantajada bunda pelas misérias de Luanda continua, com eficiência, a trajetória de seu criador. Jaime Bunda, uma paródia de James Bond, cujo apelido faz óbvia referência à sua anatomia, é um personagem obcecado pelos filmes do agente inglês e romances policiais norte-americanos, aspecto que alguns críticos consideram como ilustrativo de elementos do subdesenvolvimento de Angola — rebaixando a fórmula!!!! Uau!
Jaime Bunda é membro da uma família tradicional angolana que, graças a uma rara capacidade de observação dos detalhes, e por influência do primo, um figurão do governo, consegue o cargo de detetive estagiário — sem muitas atribuições e tendo de aguentar a gozação dos colegas investigadores. Bunda, por fim, recebe a oportunidade de provar que é competente, em seu primeiro caso importante.
No primeiro dos dois romances, Jaime Bunda, Agente Secreto, publicado em 2001, o protagonista investiga um estupro e assassinato de uma adolescente. Jaime parte com entusiasmo para a apuração do crime, ainda sem suspeitos, e, com seus métodos excêntricos, acaba por se envolver em uma trama complexa que reúne escroques internacionais, altos funcionários do governo e uma mulher misteriosa. Na investigação, segue um falsificador sul-africano chamado Karl Botha, uma referência ao ex-primeiro-ministro sul-africano P.W. Botha, quem autorizou a intervenção sul-africana em Angola em 1975.
O segundo romance, Jaime Bunda e a Morte do Americano, publicado em 2003, tem lugar em Benguela em vez de Luanda, e trata da influência norte-americana em Angola. Jaime Bunda investiga o assassinato de um norte-americano e tenta seduzir uma agente do FBI: o romance apresenta a crítica de Pepetela à política exterior dos Estados Unidos, com o comportamento pesado da polícia angolana refletindo a maneira como os norte americanos trataram os suspeitos de terrorismo durante o mesmo período.
Os romances são populares em Portugal, também tendo êxito em outros países europeus, como a Alemanha, onde Pepetela era desconhecido antes de usar a fórmula. Os livros protagonizados por Jaime Bunda são leves, são levíssimos, mas dão o seu recado. Com pitadas de graça e sátira, o escritor passeia pela corrupção, pela anomia, pela miséria cristalizada de uma favela chamada Roque Santeiro, no miolo da capital Luanda.
“Jaime Bunda, Agente Secreto” é, acima de tudo, uma parábola da organização social de Angola. O autor usa seu olhar crítico para denunciar, com bom humor, o ranço colonial que ainda resiste nas instituições angolanas, e assim apresenta um retrato pouco conhecido de seu país, infelizmente, tão parecido com o Brasil.