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terça-feira, 29 de novembro de 2011

Modernos e modernistas

Modernos e modernistas

Nos últimos anos houve um aumento considerável de textos de literatura policial escrita por autores nacionais. Acredito que cada um deles merece uma crônica em separado. Hoje vou dar algumas rápidas pinceladas na modernidade e retornar um pouco no tempo para revelar uma curiosidade do gênero policial.
Entre os autores que estão publicando com sucesso temos Joaquim Nogueira, delegado de polícia aposentado que transpõe para a literatura suas experiências profissionais. Venício, seu protagonista, é um tira durão e honesto. Usa o telefone da vizinha e come arroz com feijão, bife e uma saladinha no botequim da esquina onde o dono vende fiado. Dirige um fusca velho e resolve os casos.
Nelson Motta criou o noir baiano, com o tranquilo investigador particular Augustão que anda de sandálias e bermudas e não vive sem sexo, drogas e afro-jazz. Jô Soares também usou a fórmula policial de uma forma lúdica em seus romances, começando pelo Xandô de Baker Street. Tony Belloto desceu do palco dos Titãs e criou o detetive Bellini, que já se deparou com o demônio, a esfinge e os espíritos.
Contratado por um bandido, o detetive Alyrio Cobra, criação desta que vos fala, viveu uma investigação interessante, que sairá logo no começo do ano pela KBR em ebook com o nome de Peças Fragilizadas (a versão em papel virá um pouco mais tarde, em grande estilo). Nos momentos em que ele se sente sem rumo nas investigações, Alyrio anda pelo centro velho de São Paulo, sobe ao terraço do edifício Banespa e observa a atordoante metrópole.
Voltando um pouco no tempo, existiu Patrícia Rehder Galvão, ou Pagu, como ficou conhecida. Acho muito curioso que uma mulher militante do partido comunista tenha se rendido à fórmula policial! Mas quem foi Patrícia Rehder Galvão, ou Pagu, como ficou conhecida? Com certeza uma mulher de inúmeros matizes, versátil, inteligente, corajosa e inquieta. Começou como jornalista (com 15 anos), tornou-se ativista política, autora de romances políticos e colaboradora de movimentos intelectuais. Militante comunista, foi a primeira mulher a ser presa no Brasil por motivações políticas.
Embora seja muito conhecida, sua vida merece ser ligeiramente relembrada.
Nasceu em São João da Boa Vista em 9 de junho de 1910. Bem antes de virar Pagu, apelido que lhe foi dado pelo poeta Raul Bopp, já era uma mulher avançada para os padrões da época. Cometia “extravagâncias” como fumar na rua, usar blusas transparentes, manter os cabelos cortados e dizer palavrões. Tinha muitos amantes e causava polêmica na sociedade. Esse comportamento não era nada compatível com sua origem familiar, pois era de família tradicional e conservadora.
Embora tenha se tornado musa dos modernistas, Pagu não participou da Semana de Arte Moderna. Tinha apenas 12 anos em 1922, quando a Semana se realizou. Entretanto, com 18 anos, mal completara o Curso na Escola Normal da Capital (São Paulo), integrou-se em 1928 ao movimento antropofágico/modernista, sob a influência de Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral.
Em 1930, promoveu mais um escândalo para a sociedade conservadora de então: Oswald separou-se de Tarsila e casou-se com ela no Cemitério da Consolação. Eram amantes desde a época em que Oswald era casado. No mesmo ano, nasceu Rudá de Andrade, segundo filho de Oswald e primeiro de Pagu.
Ativa no partido comunista, Pagu foi presa pela polícia política de Vargas ao participar da organização de uma greve de estivadores em Santos. Ao sair da prisão, largou o filho e o marido e foi para a Europa. Viajou pelo mundo. Filiou-se ao partido comunista francês.
Foi presa em Paris como comunista estrangeira, com identidade falsa, e teve que ser repatriada para o Brasil. Separou-se de Oswald depois de brigas sensacionais. Foi presa novamente. Ao sair da prisão, em 1940, rompeu com o Partido, passando a defender um socialismo de linha trotskista.
Casou-se pela segunda vez com o jornalista Geraldo Ferraz. Seu segundo filho, Geraldo Galvão Ferraz, nasceu em 18 de junho de 1941. Nessa mesma época viajou à China e obteve as primeiras sementes de soja que foram introduzidas no Brasil. Foi uma mulher forte e revolucionária, que deixou marcas profundas na nossa história.
Ao ser acometida por um câncer, viajou para Paris a fim de se submeter a uma cirurgia, sem resultados positivos. Decepcionada e desesperada por estar doente, Patrícia tentou o suicídio. Voltou ao Brasil e faleceu no dia 12 de dezembro de 1962.
É curioso que uma mulher com esse histórico de vida tenha se rendido à fórmula policial. Sob o pseudônimo de King Shelter, em apenas seis meses — de junho a dezembro de 1944 —, escreveu contos policiais para a revista Detective, dirigida por Nelson Rodrigues, que publicava autores de peso.
Da mesma maneira que surgiu, King Shelter desapareceu. Os nove contos escritos para a Detective, um dos mais bem-sucedidos exemplos da pulp fiction no Brasil, jamais foram reeditados. Mas cinquenta e quatro anos depois King Shelter reapareceu, e, como em um bom enredo policial, sua identidade foi finalmente revelada. A redescoberta dos contos de Pagu seguiu um roteiro que poderia servir de ponto de partida para mais uma narrativa policial.
Geraldo Galvão Ferraz, filho de Pagu e fã das revistas policiais, encontrou em um sebo paulista uma coleção da Detective publicada no Brasil. Ao examinar com cuidado a nova aquisição em busca de um conto de Dashiell Hammett, descobriu uma história escrita por King Shelter. O nome jogou uma luz nas memórias de Ferraz: anos antes, ouvira uma referência ao pseudônimo em uma conversa com o pai, Geraldo Ferraz. “Ele havia me falado sobre King Shelter e chegou a me mostrar uma edição da Detective com um dos contos. Na época, não dei importância, nem sequer li. Depois, perdi a revista e o contato com Shelter”.
A partir do reencontro, Geraldo iniciou uma pesquisa até encontrar os nove contos. A descoberta dos contos policiais de Pagu mostrou a ele um aspecto desconhecido da mãe. “Há o aspecto curioso, de descobrir que uma mulher como ela, vista como libertária e engajada politicamente, escrevia contos policiais. Mas, ao ler o material, comecei a perceber que, além da curiosidade, ela tinha uma qualidade literária dentro do gênero e da época”.
Geraldo reuniu os contos e os publicou em Safra Macabra (Livraria José Olympio Editora, 1998). O detetive Ducrot, personagem criada por Pagu, ops!, por King Shelter, é descrito como admirador da lógica e do bom senso, mas às vezes, parte para a ação, atira e briga. “Ele é elegante e refinado, parecia muito um estudante boêmio com seu chapéu largo, a echarpe colorida, os olhos imprecisos, ora gaiatos, ora tristes” (“A mão viva da morta”). Em “O Dinheiro dos Mutilados”, a personagem Violeta Cottot é uma jovem francesa que, sob o pseudônimo “Mossidora”, escreve as mais perfeitas novelas policiais contemporâneas para uma revista chamada Delinquente, numa clara referência à sua própria condição, mas em tom jocoso.
Em Safra Macabra, os contos foram publicados em ordem cronológica, o que permite analisar a evolução da qualidade dos textos. À medida que publicava na revista Detective, Pagu se firmava no gênero, dominando cada vez melhor a técnica e a fórmula.

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Espinosa sem o final feliz

Espinosa sem o final feliz


O policial é um gênero que, apesar de considerado pelos críticos uma literatura de entretenimento,  foi sempre aclamado no exterior pelo público e pelos editores. No Brasil, a multiplicação de textos de literatura policial de autores nacionais e a atenção dada por alguns editores a esse tipo de produção são pistas que nos levam a deduzir que a história da literatura policial brasileira ainda terá muitos capítulos, incluindo o meu detetive Alyrio Cobra, que começa a ser publicado.
Luiz Alfredo Garcia-Roza, considerado pela crítica um dos principais autores nacionais de literatura policial, teve todos os seus livros publicados pela Companhia das Letras na coleção Série Policial, que abarca obras tanto de autores estrangeiros como brasileiros. Garcia-Roza estreou na literatura de ficção em 1996, aos 60 anos de idade. Antes disso, foi professor universitário e autor de livros sobre psicanálise.
As histórias de Luiz Alfredo Garcia-Roza com seu delegado Espinosa são deliciosas. Li todos os seus livros, e recomendo. O delegado Espinosa é um policial honesto e respeitado, que vive no Bairro Peixoto em Copacabana e possui em seu apartamento uma montanha de livros sem estante. No entanto, as narrativas de Garcia-Roza não chegam a um desfecho definitivo: podemos afirmar que a ambiguidade nos desfechos é uma de suas características. Essa falta de um desvendamento claro, que geraria um veredicto capaz de delimitar a culpa de um crime em torno do criminoso faz com que suas narrativas não tenham o final feliz esperado na literatura policial. Segundo Sandra Reimão, autora do livro Literatura Policial Brasileira, suas narrativas podem ser vistas como que dialogando com clássicos da literatura policial noir.
Em O Silêncio da Chuva, romance de estreia muito premiado, um executivo é encontrado morto, sentado ao volante do próprio carro, num edifício-garagem no centro do Rio. Não há outros sinais de violência, apenas a marca de um tiro, único e definitivo: “é um morto de indiscutível compostura”. A intrincada história começa com o suicídio desse executivo, que deixa uma carta e vinte mil dólares como “presente” para que a polícia não divulgue a forma como morreu. No entanto, antes da chegada da polícia, um desocupado, por puro acaso, entra na garagem do edifício, encontra o morto, a arma, a carta e o dinheiro. Ao final da narrativa, o leitor fica sem saber o que o delegado Espinosa fará com os elementos materiais que sobraram do crime e que podem beneficiar alguns envolvidos.
Dos nove romances escritos até agora por Garcia-Roza, o detetive Espinosa só ficou de fora de Berenice procura, de 2005. Em Vento Sudoeste (1999), Gabriel, um rapaz triste e solitário, que mora com a mãe e está às vésperas de fazer 30 anos, procura o delegado Espinosa com uma  história estranhíssima. No seu último aniversário, um vidente tinha dito que ele cometeria um assassinato deliberado antes de completar 30 anos. Gabriel está assustado com o anúncio e seu aniversário se aproxima. Depois da conversa com Espinosa, a amiga que levara Gabriel para conversar com o delegado é assassinada. Há uma série de assassinatos de pessoas próximas a Gabriel. Dona Alzira, mãe do rapaz, acha que o filho está possuído pelo demônio e pede ajuda a um padre. Há uma versão final oficial para explicar os crimes, mas, no seu íntimo, o delegado Espinosa tem outra interpretação para os fatos. Para ele, o criminoso é outro, e ele diz: “o que eu acho é muito fantasioso para constar de um inquérito policial… Passado algum tempo, acho que ele vai me procurar… Não sei o que virá primeiro: a confissão ou a loucura”.
Espinosa sem saída é bastante inquietante. Nessa narrativa, Espinosa tem 43 anos e constata que está há 20 na polícia. Tem dificuldade de entender todo esse tempo e olha seu passado como se não lhe pertencesse de fato. “A mesma geografia”, reconhece, “e histórias tão distintas”. Sente-se envelhecer, declinar, e é dessa perspectiva que se dispõe a investigar a morte de um sem-teto. Ninguém, claro, se interessa pelo caso. Não se sabe o nome da vítima ou o que fazia no alto de uma ladeira, tarde da noite, sob um temporal. Ninguém o conhece, nem parece ter motivo para matá-lo. Não há suspeitos. Espinosa prossegue. E é a imaginação um tanto delirante do detetive que insiste em buscar laços entre a misteriosa morte do sem-teto e a gente moderna e chique, que mostra a rachadura social profunda do Rio de Janeiro, uma cidade de dupla personalidade, como tantos duplos que o livro traz: dois crimes (além do sem-teto, a de uma moça elegante e rica), dois nomes para um dos mortos, outros dois para uma das suspeitas, ambiguidades sexuais que opõem vertiginosos prazeres clandestinos à repetição do universo familiar. Sem contar, claro, a duplicidade do próprio detetive, cada vez mais distante do mundo em que trabalha, cada vez mais diferente das pessoas que o rodeiam.
Em seu último romance, Céu de Origamis, Espinosa está afastado do cargo, pois se recupera de um atentado relatado no livro anterior. Inicia de forma extraoficial a investigação sobre o estranho desaparecimento de um dentista. Na metade do livro, reassume o cargo. A história se sustenta no conjunto dos eventos que apresenta e na sólida caracterização do detetive, agora ainda mais reflexivo. Espinosa consegue construir raciocínios rigorosos e, ao mesmo tempo, flana pela cidade e pelas ideias, se imiscui nas tramas e se expõe.
Curioso é notar a construção gradativa de vínculos familiares do detetive. A aproximação com o filho e a manutenção da mesma namorada dos romances anteriores revela o amadurecimento e, melhor, o envelhecimento do personagem. É em Uma Janela em Copacabana que se percebe mais claramente o diálogo com a literatura noir, a começar pela capa do livro: Copacabana, Rio de Janeiro. Dois policiais são executados em curto espaço de tempo. Suas mortes têm muito em comum. Ambas as vítimas eram tiras de segundo escalão, com carreiras medíocres. Percorrendo as ruas de sua geografia predileta, entre os bairros do Leme e de Copacabana, Espinosa vai se deparar com outras mortes e com uma mulher enigmática e insinuante, casada com um figurão da área econômica do governo federal. Esta mulher observa a vida pela sua janela. Na foto da capa, temos parte da frente de um edifício com seis janelas iluminadas. Na janela central se vê uma moça provavelmente lendo, nas demais janelas, apenas venezianas e cortinas por detrás das quais luzes acesas indicam sinais de presença humana. A foto redobra e ressoa o título. O ângulo indica que o fotógrafo estaria em um apartamento do prédio em frente exercendo sua atividade de observador privilegiado e oculto da vida alheia. É um diálogo com o clássico do cinema de Hitchcock, “Janela Indiscreta”, de 1954, estrelado por James Stewart e Grace Kelly.
Espinosa ilustra a linha tantas vezes defendida pelo argentino Ricardo Piglia: a de que a narrativa policial é, sobretudo, uma crônica e uma denúncia social. Talvez por isso Garcia-Roza associe, pela boca de Espinosa, a realidade à ficção, sem se preocupar com o final feliz.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

A forma da água

A forma da água


Na semana passada, falei de Manuel Vázquez Montalbán e seu detetive Pepe Carvalho. É justo falar hoje do italiano Andrea Camilleri, que criou o comissário Montalbano, Salvo Montalbano, em sua homenagem.
Andrea Camilleri nasceu em Porto Empedocle, Agrigento, em setembro de 1925. Iniciou sua vida como roteirista e diretor de teatro e televisão, produzindo os famosos seriados policiais do comissário Maigret e do tenente Sheridan. A partir dos anos 1980, passou a se dedicar à narrativa. Depois de escrever romances históricos, enveredou pelos caminhos da literatura policial: a consagração chegou apenas no início dos anos 1990, quando publicou A forma da água, primeiro caso do comissário Salvo Montalbano.
Criado, como eu disse, em homenagem ao escritor Montalbán, Montalbano tem em comum com ele o gosto pela gastronomia, mas está mais próximo de Maigret, de Simenon, de quem Camilleri era leitor desde a juventude e de quem se tornou grande conhecedor, através dos roteiros para séries de TV.
Nos casos de Montalbano, a cidade natal de Camilleri surge transfigurada como a cidade de Vigàta, na província de Montelusa, na Sicília. O local é magnificamente caracterizado pelo autor: o espírito siciliano, a comida, as paisagens, o humor, os tipos, tudo está presente nas histórias de forma ágil, divertida, e ao mesmo tempo sensível. Como Maigret, Montalbano aprecia a comida e tem seus locais e pratos preferidos, sempre explicando o modo de prepará-los. Vive sozinho, e tem uma mulher que vai arrumar sua casa e também prepara pratos excelentes. Todos com receitas!
Por trás de cada trama que se desenvolve na cidade fictícia, uma comunidade pobre do sul da Itália, o autor retrata com sensibilidade a realidade social que divide brutalmente a Itália meridional do resto do país. Em Vigàta a máfia está sempre subentendida, e a teia de corrupção, de compadrio político e intrigas compõe um painel de fácil compreensão para o leitor brasileiro, ao mesmo tempo em que nos serve de consolo, já que demonstra que certas mazelas não ocorrem apenas ao sul do Equador.
Salvo Montalbano tem um pai distante e uma noiva que trabalha e vive em outra cidade, e vem visitá-lo de vez em quando. Seus companheiros da polícia têm por ele respeito e amizade. Ele não é perfeito, precisa vigiar o peso, mas é apaixonado pela boa mesa. Vive próximo à praia e gosta de nadar e andar na areia. Raciocina melhor sobre seus casos quando, à noite, se deixa levar pelo calmo mar da Sicília.
Em uma de suas entrevistas, Camilleri fala de suas influências e confessa que, ao falar de Vigàta, fala da Sicília como um todo — como Tolstoi, que dizia que quem descrevesse bem sua vila estaria descrevendo o mundo. O autor afirma também que busca fazer um trabalho com a linguagem, misturando o italiano e certas expressões do dialeto siciliano, pois chegou à conclusão de que se escrevesse somente em italiano clássico não atingiria todos os objetivos.
Aqui no Brasil, a editora Record publicou diversos de seus romances policiais na série especial “Noir Europeu”. Sou suspeita para falar, pois gosto de romances policiais e gosto muito da Itália. O comissário Montalbano é um italiano típico, e a Itália por onde ele circula é descrita com uma veracidade incrível, o que nos mostra, que como a água, que  adquire a forma do recipiente onde a colocamos, também a fórmula policial se adapta a bons escritores! Vale a pena conferir.
A editora Record vem publicando todas as aventuras de Montalbano. Depois de A forma da água vieram O cão de terracota, O ladrão de merendas, A voz do violino, Excursão a Tíndari e A lua de papel, além de alguns livros de contos com pequenas aventuras que são deliciosas de se ler.
Até a próxima!

terça-feira, 8 de novembro de 2011

A fórmula engajada

A fórmula engajada

Não gosto de literatura engajada. Com raras exceções, são leituras longas e chatas. É preciso estar muito enfronhada no mesmo grupo para ver graça no texto e sentir prazer na leitura.
Um dos poucos engajadíssimos de que gosto muito é Manuel Vázquez Montalbán. Com certeza ele possui motivos de sobra para ser engajado! Seu pai, Evaristo Vázquez, republicano exilado na França, entrou clandestinamente na Espanha para conhecer o filho recém-nascido e foi preso. Enquanto estudava jornalismo, Montalbán trabalhou numa casa funerária. Estudou Filosofia e Letras na Universidade Autónoma de Barcelona. Em 1960, foi chefe nacional de propaganda do Servicio Universitário del Trabajo e depois colaborador interno da imprensa do Movimiento. Em 1961 se casou com Ana Sallés. Em seguida, passou um ano e meio na prisão por ter participado de uma manifestação. Ali escreveu o seu ensaio “Informe sobre la información” (1963). Entre 1963 e 1969 foi-lhe proibido o acesso aos meios de comunicação e foi-lhe retirado o passaporte até 1972. Participou na revista CAU (1970-74) e foi colaborador fixo da Triunfo e das revistas Mundo Obrero, La Calle e Interviú. Em 1977 ingressou no Comité Central do Partido Socialista Unificado da Catalunha.
Engajamento à parte, Montalbán nasceu em Barcelona, na Espanha, em 1939, e morreu em Bangkok, em 2003, de ataque cardíaco, no aeroporto. Foi um dos mais fecundos escritores espanhóis, com uma produção tão variada quanto premiada de mais de cinquenta romances, ensaios, biografias e reportagens. Escreveu ainda livros de poesia e a Autobiografia do General Franco (1992). No meio disso tudo, criou o detetive Pepe Carvalho, protagonista de uma série policial, no mínimo, fascinante.
Escrever sobre Pepe é um exercício de contradições. Pepe Carvalho é um detetive particular, ex-comunista, que mora em Barcelona. Além de ex-comunista, é também ex-agente da CIA. É uma surpresa Pepe ter trabalhado para a CIA, sendo quem é, ainda mais se considerarmos o autor do personagem. Outra contradição é que ele é um homem de uma cultura invejável, que queima livros em sua lareira!
Liberado da CIA, Pepe retorna à Espanha e começa a queimar livros. O que significa queimar livros? Seria uma metáfora para a libertação dos antigos mestres, ou, simplesmente, o ato de ignorar o conhecimento acumulado pela humanidade? A queima de livros foi sempre uma forma de o povo dominador reprimir a história do dominado. O Index (livros proibidos) do cristianismo é um exemplo disso, a história está recheada desse tipo de comportamento. No caso de Pepe, por vezes me parece um deboche em relação a tudo o que foi pensado e escrito e não serviu para nada!
A exemplo de Nero Wolf, que tinha um cozinheiro fantástico, Pepe também tem Biscuter, que não só cozinha, como explica as receitas e é seu único amigo e companheiro. Ambos são capazes de percorrer quilômetros somente para apreciar um determinado prato em um restaurante que poucos conhecem, mas cujo cozinheiro ou cozinheira são excelentes. A paixão gastronômica de Carvalho e Biscuter reflete a do autor, que em cada romance apaixonado inclui descrições culinárias dos pratos mais variados.
A companheira de Pepe é uma prostituta. Eles se dão muito bem, mesmo ela descrevendo o que faz com seus clientes. Aliás, ela trata sua profissão e descreve como atua com seus clientes como se descrevesse uma lavagem de roupa ou o trabalho em uma loja.
Resumi as contradições? Não, claro que não. Elas estão estampadas em cada livro, em cada dúvida, em cada solução de caso. Pepe Carvalho assume o desencanto e nos mostra uma Espanha em transição. E não somente a Espanha, mas o mundo que vivemos, a América Latina pós-ditaduras, o leste europeu pós-União Soviética, e também nos transmite uma ternura pelos vários lugares por onde Pepe (ou Montalban) passou, pelas cidades, pelos restaurantes, pelos bares, e, principalmente, pela comida.
Pepe Carvalho tem uma personalidade rica, complexa e contraditória. Para descrever as suas aventuras, e, em muitos casos, criticar seu país, o autor usa a situação política e cultural da sociedade espanhola durante a última metade do século 20.
A saga de Carvalho chegou ao fim com a publicação póstuma de Milênio, em que o detetive, acompanhado por seu parceiro inseparável Biscuter, impõe-se uma última aventura na forma de viagem, que acaba sendo um olhar amargo e melancólico sobre a situação sociopolítica do mundo e a passagem do tempo. Pepe se sente perplexo ao descobrir que está sendo acusado de assassinato pela polícia de Barcelona, e não lhe resta outra saída a não ser viajar (acompanhado do inseparável Biscuter) para Gênova e, de lá, seguir em uma fuga mirabolante ao redor do mundo.
Viajando sob os nomes de Bouvard e Pécuchet, personagens da obra de Gustave Flaubert, o detetive e seu assistente tentam ficar um passo à frente de seus algozes, enquanto procuram novas companhias para despistar as autoridades. Só que uma dessas companhias, que atende pelo nome de madame Lissieux (com quem Biscuter parece se entender muito bem), desaparece pouco depois de os freios do carro de Carvalho falharem misteriosamente. Conforme se intensifica a perseguição, Carvalho e Biscuter vão a Israel, Turquia, Cabul, Argentina e até ao Brasil, para resolver o enigma detetivesco. Milênio não é apenas uma aventura ao redor do globo, é também um giro gastronômico, político e sentimental pelo mundo contemporâneo.
Entre as muitas aventuras que Pepe Carvalho protagonizou está também O Quinteto de Buenos Aires. Menciono-a por ser uma história ambientada em Buenos Aires, vinte anos depois do golpe militar de 1976. Os porões da ditadura argentina voltam a se agitar quando Raúl Tourón, primo de Carvalho, desaparece na cidade ao tentar acertar contas com o passado. Nesse acerto de contas, sua filha foi sequestrada e sua mulher, morta. Em busca do primo desaparecido, o detetive Pepe Carvalho mergulha no rescaldo da ditadura.
Como podemos ver, Montalbán usou o apaixonante detetive Pepe Carvalho e a fórmula policial para fazer uma ótima literatura!

terça-feira, 1 de novembro de 2011

A grande arte

A grande arte

Na semana passada falamos um pouco sobre o romance policial no Brasil, especialmente da primeira tentativa que foi O Mistério. Desde então, muita gente se aventurou nesta área. Acredito que a linha de sátira teve seu ápice com o detetive Ed Mort, personagem criado por Luís Fernando Veríssimo como uma paródia das histórias de crime norte-americanas.
Mort é um detetive particular trapalhão, sempre sem dinheiro, que se mete em todo tipo de encrencas. Divide seu espaço — um escritório em Copacabana, que ele chama apenas de “escri” porque é muito pequeno — com 117 baratas e um rato albino chamado Voltaire. A estrutura dos contos é sempre a mesma: Ed Mort está desocupado e sem dinheiro em seu escritório, chega uma mulher e pede que ele localize seu marido. Ele o faz e, por algum motivo, a cliente não o paga.
O exagero é o principal recurso cômico de Veríssimo. Parodiando os protagonistas das narrativas noir, que são normalmente rudes e sem recursos financeiros, Ed Mort apresenta estas características multiplicadas: “…respondi, arranjando as sobrancelhas na posição “Cínico Sim Mas Você Pode Me Recuperar”; ou “Meus móveis eram escandinavos. Caixotes de bacalhau Norueguês”. Era tão desprovido de recursos financeiros que até a caneta que usava era alugada.
No que diz respeito às mulheres, Ed realiza grandes investidas, só que apenas em sua imaginação: “Convidei-a a fazer amor oriental comigo. Algo envolvendo caligrafia, arroz e as sete safadezas de Lao-tsé. Isto em pensamento, claro.”
Em 1997, Ed Mort virou filme, dirigido por Alain Fresnot, com roteiro baseado no conto “Procurando o Silva”. O detetive foi interpretado por Paulo Betti.
Além da sátira, podemos afirmar que no Brasil houve também tentativas muito bem-sucedidas de uma literatura policial séria. Vários autores como Marcos Rey, Fernando Sabino, José Louzeiro e outros escreveram narrativas policiais.
Em 2004, a Editora DBA resgatou uma coletânea do contos muito importante: A ideia de matar Belina, de Luiz Lopes Coelho, reeditado justamente por ser um elo perdido (e reencontrado pela editora) entre a tradição anglo-americana do romance policial e a moderna narrativa criminal brasileira. O detetive de Luiz Lopes Coelho, Dr. Leite, é o primeiro exemplar de uma galeria de investigadores. Os contos são realmente deliciosos e têm um sabor da belle époque paulistana, descrevendo lugares onde se reunia a elite, como o Jóquei Clube. Com o retorno do detetive Dr. Leite à cena do crime a Editora DBA fez justiça ao charmoso e bem-humorado introdutor de nosso romance criminal.
No entanto, podemos afirmar que o grande marco da literatura policial brasileira é Rubem Fonseca, que se tornou, a partir de meados dos anos 1970, um sucesso de vendas. Desde o livro de estreia — os contos de Os prisioneiros, publicados em 1963 — a temática da violência tem sido central em sua produção. Em 1975 foi publicado o Feliz Ano Novo, que foi interditado pela censura federal em 1976. A polêmica criada pela interdição propiciou uma divulgação ainda maior de sua obra.
Rubem Fonseca geralmente retrata, em estilo seco e direto, a luxúria e a violência urbana em um mundo onde marginais, assassinos, prostitutas, miseráveis e delegados se misturam. Retratar a História através da ficção é também uma marca de Rubem Fonseca, como nos romances Agosto, seu livro mais famoso, em que retratou as conspirações que resultaram no suicídio de Getúlio Vargas; e em O Selvagem da Ópera, em que retrata a vida de Carlos Gomes; ou ainda em Vastas emoções e pensamentos imperfeitos, que retrata A Cavalaria Vermelha, livro de Isaac Babel.
Para protagonizar alguns de seus contos e romances, Fonseca criou um personagem antológico: o advogado Mandrake, mulherengo, cínico e imoral, além de profundo conhecedor do submundo carioca. Mandrake foi transformado em série para a rede de televisão HBO, com roteiros de José Henrique Fonseca, filho de Rubem, e o ator Marcos Palmeira no papel-título. A série foi baseada nos livros A Grande Arte e Mandrake, a Bíblia e a Bengala.
Mandrake é um advogado do Rio de Janeiro especializado em resolver casos de chantagem e extorsão, que se envolve tanto com indivíduos da alta sociedade carioca quanto com as camadas mais baixas da sociedade. Seu trabalho é lidar com esses elementos para ajudar seus clientes.
A produção de Rubem Fonseca propiciou certa “retomada de fôlego” do gênero policial no Brasil e se tornou referência para os escritores que se seguiram. Apesar de muitas vezes classificado como autor de literatura policial, especialmente pelos contos em que usa o personagem Mandrake, apenas nos romances A grande arte e Bufo & Spallanzani ele usa as técnicas narrativas clássicas do romance policial.
A grande arte é uma história de verdades e fachadas, de colunáveis e respeitáveis corruptos de luvas brancas e de pequenos marginais de mãos ensanguentadas; de violências legalizadas e de massacres físicos. O papel do Brasil na rota internacional da cocaína é um dos dados de ação do livro. A trama básica conduz o texto, por um lado, a abordar o crime de “colarinho branco” organizado e, por outro, a tematizar uma questão que paira no horizonte da literatura policial – a do homem como possível leitor de signos e possível agente de seu destino, em contraponto ao homem enquanto paciente de um destino que lhe é ininteligível e inexorável. O romance teve uma versão fantástica para o cinema, a começar pela primeira tomada, uma aproximação dos arcos da Lapa.
Em Bufo & Spallanzani, Ivan Canabrava é um detetive da Companhia Panamericana de Seguros que está investigando o caso de um fazendeiro que morreu pouco após fazer um seguro de um milhão de dólares. Desconfiado de que a empresa onde trabalha esteja sendo vítima de uma fraude, Ivan passa a investigar a viúva e descobre, no apartamento do casal, um sapo morto e uma planta exótica. Pesquisando sobre o assunto, com a ajuda do cientista Ceresso e da jovem Minolta, Ivan passa então a se envolver cada vez mais com suas investigações, o que desagrada seu chefe.
Como podemos ver, tanto a sátira como a versão séria têm gente de peso como seus representantes, provando que o romance policial é A GRANDE ARTE.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Onde tudo acaba em pizza

Onde tudo acaba em pizza

Numa das primeiras crônicas que escrevi sobre o gênero policial mencionei o livro O Mistério, que foi publicado em capítulos no jornal A Folha a partir de 20 de março de 1920, e logo depois editado em livro pela Companhia Editora Nacional.
Volto ao assunto, pois foi o primeiro livro policial produzido no Brasil e ditou por muito tempo o tom de sátira aos nossos escritores. Em O Mistério, não só o detetive protagonista e a polícia como instituição são alvos do cômico, mas a própria narrativa é ironizada em vários aspectos.
Em primeiro lugar, encontramos uma desvalorização do gênero policial. Logo no primeiro capítulo, ao apresentar o assassino, afirma-se que ele “lera centenas de romances e contos policiais, não pelo prazer que pudesse fazer essa baixa literatura, mas pelo desejo de estudar todos os meios de levar a cabo o crime que projetava e de escapar à punição.” (grifo meu)
O detetive protagonista Mello Bandeira, que procura ser como Holmes, uma máquina de pensar, é surpreendido em uma atitude carinhosa para com uma das moças detidas para investigação. Tal deslize não é perdoado, o que faz com que o personagem se suicide.
Por outro lado, o assassino Pedro Albergaria é a personagem através da qual os autores farão críticas à polícia mais insistentemente: denuncia-se seu comprometimento com a classe dominante, sua subordinação à imprensa e à opinião pública, seus métodos violentos de obter informações e confissões e a participação da polícia na contravenção.
Ao final do livro, Pedro Albergaria confessa seu crime e vai a julgamento. Apesar de réu confesso, é absolvido, o que transforma o assassinato de Sanches Lobo em um crime impune. Logo que Pedro Albergaria confessa seu crime, Dr. Viriato Corrêa, seu advogado, já vê nesse crime, em primeiro lugar, um “drama magnífico a desenrolar-se no tribunal popular”. Além disso, o advogado resolve munir-se de um esquema de chantagem emocional, pois, segundo a narrativa, “brasileiro é piedoso, consente, vá lá que se mate e roube… mas que o assassino ou ladrão sejam presos, coitados! Isto é que não, isso é que é demais – na rua com eles!”
Desde então foram muitas as incursões de autores brasileiros no gênero policial. Não se pode afirmar que o Brasil possua uma Literatura Policial com letra maiúscula, fisionomia definida e consolidada. A ficção policial brasileira é um organismo ainda em formação que, aos poucos, vai adquirindo traços mais vívidos, pondo em relevo características comuns presentes na prosa e no estilo dos nossos escritores, eu incluída entre eles: venho tentando me firmar no gênero, com o detetive Alyrio Cobra.
Observando nossa primeira história policial, recordei-me do recente sucesso do livro 1808, fundamentado em pesquisa histórica, que conta como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte completamente corrupta enganaram Napoleão e mudaram a História de Portugal e do Brasil. Indo uns poucos anos para trás, até 1995, acredito que a maioria dos brasileiros se estarreceu com o filme de Carla Camurati, Carlota Joaquina, princesa do Brasil. Digo “se estarreceu”, não pela qualidade do filme, muito bom, mas por estar pela primeira vez tomando conhecimento dessa história maluca, onde tudo era sátira, e tão parecida com a realidade do nosso presente político!
Nem vamos enveredar pelo realidade atual das nossas classes governantes, o que não é o assunto desta crônica. Mas parece que tudo se completa, desde a sátira em relação ao gênero policial. Repetindo as palavras do famoso jornalista Bóris Casoy, parece que aqui tudo acaba em pizza com sobremesa de marmelada.
Até a próxima.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

A grande virada!

A grande virada!

Edmund Wilson, famoso crítico literário, por toda a vida colocou o autor de romances policiais abaixo dos cachorros. Apesar do esforço de diversos escritores para mudar sua opinião, continuou escrevendo que se tratava de literatura de segunda linha.
Jamais acreditei que existam gêneros de primeira ou segunda linha. Acho que existe literatura ótima, excelente, boa, regular ou péssima, dependendo unicamente da habilidade de cada autor, independente do gênero que escrevem.
Em relação ao policial, em 1980 ocorreu a grande virada. Umberto Eco, o maior estudioso da Idade Média na Europa, aproveitou a fórmula em seu livro O nome da rosa. Já não se podia afirmar que usá-la era sinônimo de escrever romances de segunda linha.
Falar sobre obras consagradas como O Nome da Rosa é uma audácia e um desafio. Como sempre, tendo a abordar o que remete ao gênero policial: o enredo gira em torno das investigações sobre uma série de crimes cometidos dentro de uma abadia medieval. Na história, temos um frei chamado Guilherme de Baskerville e seu ajudante Adso de Melk — torneados à imagem e semelhança do detetive Sherlock Holmes e seu caro Watson —, que em uma abadia italiana no século XIV topam com uma série de misteriosos assassinatos.
O investigador, frade franciscano, assessorado pelo noviço, vai fundo em suas investigações, apesar da resistência de alguns religiosos do local; e desvenda as causas do crime, ligadas à manutenção de uma biblioteca que abrigava em segredo obras apócrifas — que não seriam aceitas em consenso pela igreja cristã da Idade Média. Ou seja, crime, investigação e solução.
Umberto Eco brinca de tal forma com a fórmula que seu personagem principal, o Sherlock da história, tem como sobrenome uma das principais aventuras do famoso detetive, O Cão dos Baskervilles.  À semelhança de Watson, o jovem Adso de Melk, filho do Barão de Melk, é o narrador da história. Apesar de Umberto Eco ser doutor em semiótica, estética e teoria da comunicação, e professor da Universidade de Bolonha, foi O nome da rosa que o projetou mundialmente como escritor.
Até então, o prazer da leitura do livro policial era a aventura, o querer saber o que vai acontecer, o desmascarar do criminoso e a reimplantação da ordem. Em O nome da rosa, a este prazer típico da fórmula agregou-se o de curtir a fantástica erudição do autor e as inúmeras questões propostas no livro.
A história conta mais ou menos o seguinte: em 1327, Guilherme de Baskerville e Adso de Melk, noviço que o acompanha, chegam a um remoto mosteiro no norte da Itália. Baskerville pretende participar de um conclave para decidir questões da Igreja, mas sua atenção é desviada para vários assassinatos que acontecem no mosteiro. Começa a investigar o caso, que se mostra bastante intrincando, indo além da crença dos mais religiosos de que tudo era obra do Demônio.
Baskerville não partilha desta opinião, mas antes que conclua as investigações chega ao local Bernardo Gui, o Grão-Inquisidor,  pronto para torturar qualquer suspeito de heresia, principalmente os que tenham cometido assassinatos em nome do Diabo. Como não gosta de Baskerville, Gui o coloca no topo da lista dos que são diabolicamente influenciados. O poderoso inquisidor está determinado a erradicar a heresia através da tortura e, se Baskerville persistir em sua busca, também se tornará caça. Mas à medida que Bernardo Gui se prepara para acender a fogueira da inquisição, Baskerville e Adso voltam à labiríntica biblioteca e descobrem uma verdade extraordinária, desvendando os assassinatos.
Na época em que foi publicado, o editor de Eco acreditava que seriam vendidos trinta mil exemplares. Foram vendidos trezentos mil! Em seguida, Eco escreveu o Pós-escrito ao nome da rosa, segundo ele “um romance policial no qual se descobre muito pouco”. Atrás da fórmula policial, nos bastidores de O nome da rosa há existe uma série de intrincados debates que o leitor dificilmente desvendará, a começar pelo próprio nome do livro — que relembra a problemática suscitada pelo nominalismo entre o que é essencial e sua contraposição à rosa particular, individual no mundo.
Por trás do enredo gênero “quem matou quem?” estão disputas como a do racionalismo, personificado por Baskerville, contra o misticismo, além de querelas econômicas, políticas e filosóficas relacionadas ao poder na Igreja Católica. Além disso, O nome da rosa é uma viagem imaginária à Idade Média europeia; uma oportunidade de reflexão aberta das questões filosóficas — dos conceitos de certo e errado, de bem e mal, da moral cristã, do que está por trás dos conceitos e crenças atuais —, mesmo que por contraste com o conjunto de questionamentos que ecoam de séculos passados.
Ainda é importante mencionar que a biblioteca que serve como plano de fundo é inspirada no conto “A Biblioteca de Babel”, do argentino Jorge Luis Borges — uma biblioteca universal e infinita que abrange todos os livros do mundo. Para homenagear o escritor, Eco criou o personagem Jorge de Burgos, que além da semelhança no nome é cego, como Borges foi ficando ao longo da vida.
Em meio a uma busca frenética por um misterioso segundo volume da Poética de Aristóteles, supostamente sobre o riso, Adso comenta: “Talvez a tarefa de quem ama os homens seja fazer rir de verdade, porque a única verdade é aprendermos a nos libertar da paixão insana pela verdade.” Usando a fórmula para captar o leitor, Umberto Eco acaba levando multidões de todo o mundo em uma longa turnê pela “inverdade” dos labirintos da ficção.
Em 1986, o livro foi adaptado para o cinema pelo francês Jean-Jacques Annaud, com Sean Connery no papel principal. Desde então, foram muitos os autores que lançaram mão da fórmula policial para escrever livros que exploram questões políticas e filosóficas.
Até a próxima!

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

O destino bate à sua porta

O destino bate à sua porta

Na semana passada, quando falei sobre o enredo do livro Acima de Qualquer Suspeita, revelei que ele possuía o mesmo enredo de Édipo Rei, ou seja, o personagem principal, o investigador, acaba chegando a si próprio: apenas uma pista de como ele realiza a investigação. Assim, para os leitores que não leram o livro, converti um efeito de suspense (quem é o assassino?) em um enigma de mistério (como foi que ele fez?).
Um mistério que se resolve é, em última análise, um acontecimento que conforta o leitor, que assegura o triunfo da razão sobre o instinto, da ordem sobre o caos, seja nas histórias de Holmes ou nos casos relatados por Freud.
Esta semana vou falar de um autor que inverteu a fórmula: ao invés de crime, investigação e solução, ele optou por contar como o personagem chegava ao crime, ou seja, usou a questão “como foi que ele fez”.
Voltando um pouquinho às origens do hard boiled, falei bastante sobre Chandler e Hammett. Vou falar um pouco sobre James M. Cain — um autor importante no estilo hard boiled americano. Houve inclusive um biógrafo que o chamou de “o ovo de vinte minutos da ficção supercozida”, o super Hard Boiled!
Cain custou a ser reconhecido como um escritor noir porque escreveu muitas outras coisas, de diferentes estilos. E quando escreveu romances noir, Edmund Wilson, o terror em crítica literária da época, o pichou e detonou sua reputação.
Enquanto Hammett e Chandler escreviam sobre detetives delicados/durões, que tentavam desenredar a confusão causada por outra pessoa com um ato violento ou ganancioso, Cain criava personagens bidimensionais, interessados apenas em si mesmos e motivados pelo desejo de dinheiro e sexo. São personagens falhos, por serem demasiado e inteiramente maus, e o autor não demonstra piedade por eles.

Diante da pergunta “como foi que ele fez?”, Cain desenvolveu o conceito de contar a história do ponto de vista do criminoso. O material de que foram feitos seus livros é o da grande literatura: dinheiro, sexo e morte. Com estes três elementos em jogo, os escrúpulos não contam muito.
Através das emoções do criminoso, o autor aos poucos cria a tensão psicológica capaz de levar ao assassinato.

Suas obras são muitas, entre elas A mulher do Mágico e A história de Mildred Pierce. Mas seu grande sucesso foi O destino bate à sua porta. Em 1934, quando foi publicado, este livro chocou tanto o público americano que foi condenado por imoralidade e proibido de circular em Boston.
Na verdade, neste romance, a violência e o erotismo estão organizados de tal maneira que dificilmente perderão força. A história é simples: o vagabundo de beira de estrada conhece a mocinha ordinária, que infelizmente é casada. Como o marido é um estorvo, que não os deixa muito à vontade para viver sua tórrida paixão, por que não acabar com ele de uma vez? São personagens secas e más. Movimentam-se em função da própria paixão e vão até o assassinato.
Também o texto é seco. A trama cerrada e a caracterização impecável dos personagens são outras virtudes deste clássico de James Cain.  Considerado na época rudimentar e grosseiro pela crítica, Cain hoje é visto como um clássico, e reconhecida a influência de O destino bate à sua porta sobre o aplaudido romance existencialista de Camus, O Estrangeiro (L’Étranger, 1941).
Em 1946, “O destino bate à sua porta” ganhou sua primeira versão cinematográfica, com Lana Turner no principal papel feminino; em 1981, refilmado com Jack Nicholson e Jessica Lange, teve sua contundência confirmada por duas interpretações magistrais.

Se eu tivesse que recomendar uma das duas, seria difícil. Minha recomendação é: assista ambas!
Até a próxima!

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Advogados acima de qualquer suspeita

Advogados acima de qualquer suspeita

Logo que comecei a escrever sobre o gênero policial, mencionei que o primeiro detetive surgiu quando as grandes cidades começavam a se formar. O mundo, que passava por uma grande mudança, a revolução industrial, de lá para cá se tornou muito mais complexo. Não vou enumerar estas complexidades, pois uma crônica não seria suficiente.
No mundo moderno interagimos mais. No entanto, a natureza humana, sendo o que é, faz com que a interação gere disputas. Em gerações passadas, nossas diferenças eram geralmente dirimidas por instituições como igrejas, famílias, grupos comunitários. A maior parte da roupa suja era lavada em casa. Passado o sufoco após a Segunda Guerra, as pessoas passaram a apelar para os advogados. A resposta universal, aparentemente automática para qualquer erro ou prejuízo, é: “Vamos processar!”
As salas dos tribunais, nos últimos cinquenta anos, também se tornaram um caldeirão onde os valores nacionais são moldados. As cortes de justiça passaram a ser mobilizadas para arbitrar contendas de significação moral e até mesmo religiosa – direito de aborto, assédio sexual, discriminação baseada em preferência de raça, gênero sexual etc. As gerações que nos antecederam teriam certamente ponderado que estas questões eram inadequadas para o procedimento judicial; hoje, os tribunais têm a última palavra, e a roupa suja é lavada em público.
Na medida em que a influência de outras instituições sociais definhou, os tribunais preencheram a lacuna. Não é de admirar que as pessoas se mostrem curiosas sobre os mecanismos internos do judiciário. A partir desta modificação no sistema e na vida cotidiana das pessoas, nos Estados Unidos surgiram diversos livros em que o detetive é o advogado.
A fórmula “crime, investigação e solução” continua exatamente como nas histórias anteriores. A diferença é que a investigação em geral acontece nos tribunais. Quando o detetive aponta o criminoso, há uma sensação de que o mundo foi resgatado do caos, que a ordem foi restabelecida. Esta ordem estabelecida acontece no sentido legal, na medida em que os personagens se esforçam para compreender não apenas o que é certo e o que é errado, mas o sentido da justiça (um conceito mais difícil e ilusório) num mundo aparentemente mais injusto.
Foi neste mundo que surgiu Rusty Sabich, personagem de Scott Turow, no livro Acima de Qualquer Suspeita. Sabich, um promotor, descobre que sua colega Carolyn Polhemus foi assassinada de maneira brutal, e é obrigado por seu chefe Raymond a lidar com as investigações. Raymond quer se reeleger para o cargo que ocupa e concorre com Tommy Molto, que está de olho em Rusty e suas atividades.
É Tommy quem garante que Rusty estava no apartamento da morta no dia de seu assassinato e que deixou suas impressões digitais num copo. Rusty é preso e desprezado pelo chefe, que lhe nega apoio. Entra em cena um advogado que vai provar sua inocência com a ajuda do detetive Lipranzer, colega de trabalho de Rusty, e de Barbara, sua esposa.
Não posso afirmar que este tenha sido o primeiro detetive advogado. Mas foi o primeiro que eu li, e amei. E pasmem, a trama é a de Édipo! O personagem principal vai em busca de si mesmo… (Putz! contei o final da história!)
Édipo ouviu de Creonte que o antigo rei estava num comboio e tinha sido morto por salteadores; e anuncia que fará o possível e o impossível para capturar o assassino. Para ajudar na investigação, chama Tirésias, um velho cego que fica sabendo das coisas através do canto e do voo dos pássaros.
Este, porém, não quer falar sobre o acontecido, já que tal revelação poderia trazer mais infelicidade, principalmente para o rei. Após muitas ameaças deste, Tirésias diz que o assassino é o próprio rei. Édipo continua a investigação e acontece toda a tragédia para ninguém botar defeito!
“Acima de Qualquer Suspeita”, tornou-se filme em 1990, com direção de Alan J. Pakula, com ninguém menos que Harrison Ford no papel principal.
Além de Turow, John Grisham tem vários títulos nas nossas listas de mais vendidos, e teve todos os seus livros filmados. Seu primeiro livro foi Tempo de Matar, passado em um tribunal. O filme conta a história de Carl Lee, um pai que teve sua filha estuprada aos dez anos de idade por dois homens brancos, bêbados e racistas na cidade de Canton, no Mississippi.
Lee dispara tiros com uma metralhadora na entrada do julgamento (ainda não existiam detectores de metal), matando dessa forma os dois agressores. De quebra, deixa deficiente um policial que os acompanhava e se pusera na linha de tiro. Não vou contar o final!!
William Bernhardt criou o detetive Ben Kincaid. Seu primeiro livro, Justiça Cega, teve a mesma trajetória de sucesso.
Como vemos, a fórmula vai mudando, vai sendo adaptada ao momento histórico do planeta e consegue assim pegar o leitor. Até a próxima!

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Meu nome é Bond, James Bond!

Meu nome é Bond, James Bond!

Na semana passada falei sobre Nero Wolfe, um dos detetives mais cerebrais da literatura mundial. Nele, além de ótimas refeições e criação de orquídeas, tudo era raciocínio.
No entanto, o que acabou por caracterizar o noir americano foi a ação, o detetive durão, as mulheres sensuais e perigosas, o automóvel, enfim, a fórmula absorvendo as modernidades de cada época.
O detetive durão é hoje tão parte do folclore americano quanto o pioneiro da fronteira ou o caubói, e como a maioria dos heróis muitas vezes tem seus feitos exagerados. Na verdade, a aparente ilimitada capacidade de beber dessas personagens e a maneira espantosa como se recuperam de surras, cacetadas e ferimentos sangrentos são quase sobre-humanas. Não há dúvida de que nenhum mortal comum poderia igualar-se.
Sempre me perguntei o que tornou tão populares essas figuras caricatas. Houve o período de depressão americana após a Primeira Guerra Mundial, em que muita gente se sentia frustrada diante dos chefões do crime organizado e políticos não muito sérios. O detetive que surgiu na ficção da época (especialmente Chandler, Hammett e M. Cain) estava empenhado numa cruzada contra os males da sociedade, se dedicando à manutenção da justiça. Como escrevi logo nas primeiras crônicas, é sempre uma luta do bem contra o mal, e o leitor precisa de um final feliz; sentir que o bem vence o mal, mesmo que seja somente na ficção, é o que faz do leitor um viciado.

Bem, na vida real aconteceu a Segunda Guerra Mundial e a figura do detetive continuou lá. Imbatível!
Nesse clima de pós-guerra, exatamente em 1953, surgiu James Bond no livro Cassino Royale, outra fórmula repetida várias vezes que deu certíssimo! Como o mundo inteiro sabe, James Bond é um agente secreto do serviço de espionagem britânico criado pelo escritor Ian Fleming.

Sei que é um desafio falar sobre personagens tão famosos, com muita literatura sobre o assunto. No caso, estou relembrando o personagem e mais uma das fórmulas que deu certo.
Antes de virar filme, Bond era literatura. Foi descrito como um homem alto, moreno, de olhar penetrante, viril, porte atlético e sedutor, com idade estimada entre 33 e 40 anos, apreciador de martini seco (batido, não mexido) exímio atirador com licença 00 para matar — sétimo agente desta categoria especial, daí seu código 007 — e perito em artes marciais, que combatia o mal pelo mundo a serviço do governo de Sua Majestade, com charme, elegância e cercado de belas mulheres, sempre se apresentando com a famosa frase “Meu nome é Bond, James Bond”.
O personagem, apresentado ao público em livros de bolso na década de 1950, tornou-se um sucesso de vendas e popularidade entre os britânicos e, logo a seguir, entre os países de língua inglesa. Na década seguinte, os livros viraram uma grande franquia no cinema, a mais duradora e bem-sucedida financeiramente, com um total de vinte dois filmes oficiais, começando com O Satânico Dr. No, em 1962.
Ian Fleming escreveu doze livros e dois contos protagonizados por James Bond, antes de morrer, em 1964. Após sua morte, outros livros foram escritos por Kingsley Amis e Raymond Benson, entre outros. Foi uma fórmula de tanto sucesso que outros autores conseguiram dar continuidade.
Às vezes me pergunto o porquê de tanto sucesso para uns e nenhum para outros. No caso de James Bond, além da fórmula que se adaptava ao pós-guerra e à Guerra Fria, o detetive ainda usava e abusava das engenhocas (gadgets) criadas pela tecnologia, que havia avançado muito durante a guerra. Outro fator foi que quando lançaram o primeiro filme James Bond foi interpretado pelo então semidesconhecido ator escocês Sean Connery. Feito com orçamento pequeno, o filme estourou nas bilheteiras de todo o mundo, transformando Connery num ícone dos anos 1960.
Além do carisma e do charme do personagem principal, havia os mirabolantes vilões, as engenhocas mortais de alta tecnologia, suas canções-tema e as maravilhosas Bond-girls! Tinha que dar certo!
Para quem é escritor, sempre é bom saber um pouco sobre o autor de personagens tão famosos. Ian Fleming era filho da nobreza britânica; estudou no famoso Eton College, cursou a Academia Militar Real de Sandhurst e deixou sua mãe furiosa ao trocá-la por um curso de idiomas nos Alpes sem sequer ter conseguido um mínimo posto de oficial. Não conseguiu ingressar no serviço de estrangeiros e, com 23 anos, não tinha carreira nem perspectivas. Trabalhou como jornalista em Moscou durante quatro anos, e posteriormente como corretor na bolsa de valores de Londres até o ano de 1939.
Durante a segunda guerra mundial, Fleming foi designado ao serviço de inteligência na Marinha britânica e, devido aos seus conhecimentos e facilidade com idiomas, serviu como assistente pessoal do Almirante John H. Godfrey, cujo perfil serviu parcialmente como modelo para o desenvolvimento da personagem “M”, o superior hierárquico de James Bond.
Durante a guerra, Fleming esteve envolvido com magos e astrólogos de peso, como Aleister Crowley, que se infiltravam entre os nazistas, pasmem, implantando informações em documentos secretos, como a falsificação de horóscopos. Fez tudo isso e mais um pouco até que, aos 45 anos de idade, acertou retomando a fórmula policial, agregando as novidades da época e criando James Bond na região do Caribe, mais precisamente na Jamaica, onde Fleming escreveu a maioria dos livros e onde se casou com Lady Ann Rothermere em 1952, filha de Lord Rothermere, proprietário do Daily Mail.
Ian Fleming morreu aos 56 anos, vítima de um ataque cardíaco na manhã de 12 de agosto de 1964, num campo de golfe, no condado de Kent. Seus livros foram traduzidos para muitos idiomas e são vendidos em edições sucessivas em todo o mundo. Os filmes vêm sendo filmados e refilmados! Vários atores já fizeram James Bond no cinema, todos eles com estrondoso sucesso!
Sorte e talento! Até a próxima.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Seguidores famosos

Seguidores famosos

Ao observar o gênero policial, podemos ver que os autores bem-sucedidos foram usando a fórmula com sabedoria e agregando detalhes da época. Os seguidores da fórmula criada por Poe foram muitos. Pretendo falar de alguns deles, hoje Rex Stout (1886-1975). Ele criou uma fórmula que repetiu 46 vezes, sem escrúpulos, e vendeu muitos milhares de livros, que se desdobraram em filmes e séries de TV, 46 histórias com o famoso detetive Nero Wolfe, considerado o mais cerebral de todos os detetives americanos: gordo, gastrônomo, leitor de poesias e criador de orquídeas.
Nero Wolf jamais deu um passo fora de casa para resolver as equações de sangue e mistério que lhe eram apresentadas. Isso ficava por conta do narrador das histórias, a exemplo de Dr. Watson, seu assistente Archer Goodwin. Ele era jovem e esbelto como manda o figurino, encarregado de arrebanhar para a casa (com orquidário e um cozinheiro invejável), no coração de Manhattan, todos os protagonistas e antagonistas da encrenca em pauta. Ali, reunidos diante da escrivaninha de Wolfe, eram submetidos à astúcia dedutiva do nosso detetive até que, do entrechoque das versões e contraversões, de confissões e atos falhos, desabrochava, como uma flor do seu orquidário, o irrefutável culpado.
Você que está lendo esta crônica, com certeza já leu uma dessas histórias! Muitas delas foram publicadas no Brasil! Eu li e reli nem sei quantas! Além de gostar demais de Nero Wolfe como detetive, gosto do seu charme nas refeições; quando nem se falava em harmonizar vinhos, cervejas e comidas, ele o fazia com maestria.
Mas vamos começar do começo. Rex Stout nasceu no estado de Indiana, de uma antiga e tradicional linhagem de quakers. Pouco depois do seu nascimento,  seus pais, John Wallace Stout e Lucetta Elizabeth Todhunter Stout, mudaram-se junto com os seus nove filhos para o estado do Kansas. Seu pai era professor e encorajou-o a ler. Diz a lenda que ainda na infância Rex leu a Bíblia inteira por duas vezes. Aos treze anos, foi campeão estadual do concurso de soletrar. Mas ele era bom mesmo em matemática.
Estudou na Universidade do Kansas. De 1906 a 1908 serviu na marinha dos Estados Unidos, e durante os quatro anos seguintes trabalhou em cerca de treze empregos diferentes em seis diferentes estados americanos. Esporadicamente, vendia poemas, histórias e artigos para diversas revistas, entre as quais a All-Story Magazine. Em 1916, devido à sua fluência em matemática e à invenção de um sistema bancário escolar, ganhou dinheiro suficiente para lhe permitir extensas viagens pela Europa. Tratava-se de um sistema de registro de poupanças efetuadas pelos alunos, pelo qual recebia royalties, e que foi adotado em cerca de 400 instituições de ensino dos Estados Unidos. Em 1929, em Paris, escreveu o seu primeiro livro, How Like a God. Regressou aos Estados Unidos e começou uma carreira literária que incluía romances policiais, contos e ficção científica.
Foi em 1934, com quase 50 anos e a publicação de Fer-de-lance (no Brasil, Serpente ou Picada Mortal), a primeira história protagonizada pelo detetive Nero Wolfe, que ele atingiu reconhecimento da crítica e do público. Esse livro foi adaptado dois anos depois para o cinema sob o título de “Meet Nero Wolfe”, dirigido por Herbert Biberman, com Edward Arnold no papel principal e Lionel Stander como Goodwin.
No ano seguinte, Stout publicou The League of Frightened Men (A Confraria do Medo), que foi adaptada para o cinema com Walter Connolly no papel principal e mantendo Stander como Archie Goodwin.
O escritor foi presidente do Author’s Guild e dos Mystery Writers of America. Em 1959 recebeu o Grand Master Award. Stout foi ativo em causas liberais e ignorou uma intimação da Comissão das Atividades Antiamericanas, no auge da era McCarthy. Anos mais tarde, perdeu muitos amigos liberais devido à sua posição em favor da intervenção dos Estados Unidos na guerra do Vietnam. No auge do sucesso, mudou-se para a França. Dizem que ele trabalhava em seus escritos três a quatro meses por ano; no resto do tempo cuidava da fantástica villa em que vivia.
Suas histórias foram publicadas e venderam muito. Também se transformaram em filmes e séries para TV. Nero Wolfe foi representado no cinema entre as décadas de 1930 e 1980. Em 1981, Nero Wolfe, representado por William Conrad, deu título a uma série de televisão de 14 episódios produzida pela Paramount Television e transmitida pela National Broadcasting Company (NBC). Em 2001 foi iniciada uma série televisiva com Maury Chaykin no papel de Nero Wolfe e Timothy Hutton representando Archie Goodwin. Esta série transmitiu 29 episódios em duas temporadas.
Nero Wolfe era tão bom que o escritor Robert Goldsborough tentou revivê-lo nos anos 1980, mas não obteve sucesso. Rex Stout morreu em 1975 na sua suntuosa villa no Mediterrâneo.
Como se vê, uma fórmula bem adaptada pode dar certo!

domingo, 28 de agosto de 2011

Noir

Noir

Na crônica da semana passada falamos do hard boiled, detetive durão insensível, e seus primeiros expoentes: Hammett e Chandler.
Ambientadas em meados do século passado, entre a grande depressão e os “anos dourados”, muitas histórias foram criadas. E tratam de uma América em crise, onde a construção da futura maior nação capitalista do mundo convivia com hordas de desempregados e aventureiros lutando pela vida.
Era uma América contaminada pelo desencanto, onde não havia ilusões entre os desvalidos nem complacência entre os vencedores: um mundo contraditório, cheio de reações ambíguas e homens violentos, os chamados “durões” — expressão imortalizada justamente por este gênero.
Nas histórias há sempre um detetive particular, maltratado pela vida e pelos tiras, que se envolve em casos geralmente estranhos, num mundo com sua lógica própria; são ricaços inescrupulosos, mulheres enigmáticas, prostitutas de luxo, escroques, assassinos de aluguel, tiras corruptos, enfim, gente da pior qualidade mesclada a perdedores de coração mole, tudo a 25 dólares por dia, mais despesas.
Foi a partir dessas histórias publicadas em livros, e também na revista Black Mask, que foi criada na França uma coleção para publicar estas mesmas histórias, todas com capa preta e impressas em papel vagabundo.
O termo pegou. Embora o gênero não tivesse sido inventado na França, a ideia de publicá-las em livros baratos com capas pretas — “noir” — nomeou o gênero. Apropriando-se dele, o cinema — utilizando a fórmula “crime, investigação e solução” e retratando personagens cínicos e durões insensíveis — fez um tremendo sucesso com seus filmes em branco e preto.
Como já disse anteriormente, não sou especialista em livros policiais, sou viciada na leitura deles! Penso o livro policial como o jazz da literatura: as músicas ou movimentos musicais estão sempre superando o que aconteceu antes, inventando e mesclando ritmos, mas o jazz é o Jazz.
Foram criados temas que vão evoluindo à medida que evoluem tecnicamente os instrumentos, mas a base, o tom do jazz, não muda. Enquanto outros movimentos se esgotam, ele continua: é uma grande arte.
O mesmo se diz do romance policial. Enquanto outras formas vão tendendo para o caótico, o romance policial se mantém com começo, meio e fim, e com a mesma fórmula: crime, investigação, solução… e sucesso absoluto de vendas.
noir, com a evolução de colocar o detetive nas ruas, usar e abusar do automóvel, com seus detetives durões e mulheres fatais, começando pelo Falcão Maltês, teve seguidores fantásticos.
James Cain (anos 1930/40), de O Destino Bate à Porta e A Mulher do Mágico, também foi dos inovadores. A maioria das suas tramas segue o mesmo esquema: um homem se apaixona por uma mulher, se envolve em uma atividade criminal com essa mulher e é traído por ela.
Ele desenvolveu o conceito de contar a história do ponto de vista do criminoso. Em o Destino Bate à Porta, um jovem errante deseja a esposa do velho dono de um boteco e, em consequência, os dois planejam o assassinato do marido. Foi um best-seller instantâneo, filmado logo depois. Cain diferia de seus antecessores por fazer de quase todos os seus personagens, senão todos, pessoas genuinamente desagradáveis e más, e revelar através das emoções delas como acabavam chegando ao assassinato.
Enquanto Hammett e Chandler escreviam sobre detetives bons/maus, delicados/durões, que tentavam desenredar a confusão causada por outra pessoa com um ato violento ou ganancioso, Cain criava personagens bidimensionais, interessados apenas em si mesmos, e motivados pelo desejo de dinheiro ou sexo. São personagens falhos, por serem demasiado e inteiramente maus, e o autor não demonstra piedade por eles.
Cain teve um biógrafo que o chamou de “o ovo de vinte minutos da ficção supercozida”, o Super Hard Boiled!
Ross Macdonald (anos 1960/70) criou o detetive Lew Archer, ex-policial de Long Beach, Califórnia, que foi demitido porque não tinha estômago para a administração corrupta da polícia à qual era forçado a servir, e por isso se tornou detetive particular (o mais famoso daquela época). Descrito como um homem solitário, que age com mais eficácia nas sombras, ele é também um “catalisador involuntário de problemas”. Trabalha num escritório pequeno e frio, mas surpreendentemente cheio de livros (que ele avidamente lê quando não está ocupado com um caso). As paredes têm pinturas modernas de boa qualidade.
Archer é diferente de muitos outros detetives durões, no sentido de que não se compraz com sexo promíscuo e tem uma verdadeira afinidade com pessoas jovens. Paul Newman o imortalizou.
Na próxima conto mais!

sábado, 20 de agosto de 2011

Hard boiled

Hard boiled

Continuando nossa historia do gênero policial, vamos dar uma relembrada. O primeiro detetive foi criado por Allan Poe. Em seguida, entre uma e outra baforada de cachimbo, Sherlock Holmes, o personagem criado pelo escocês Sir Arthur Conan Doyle, ficou famoso por desvendar mistérios através de métodos científicos, de observação detalhada e da lógica dedutiva.
Considerado um dos mais importantes personagens da literatura policial, o lendário Hercule Poirot foi criado em 1916 pela eterna dama do crime, Agatha Christie. O metódico detetive belga, sempre vestido de forma elegante, com seu bigode inconfundível, não gostava de perseguir pistas como pegadas ou impressões digitais. Preferia resolver mistérios sentado em sua poltrona, com a ajuda da “massa cinzenta”.
Jules Maigret era um detetive pouco ortodoxo, que trabalhava em um escritório de investigações criminais no Quai des Orfèvres, na capital francesa. Seu método de trabalho se caracterizava pelo uso da intuição em detrimento das evidências factuais. Em vez de descobrir como se deu um crime, Maigret preferia saber o que motivou o criminoso.
Há outros escritores, mas esses foram os mais importantes, que foram incorporando características mais marcantes em seus personagens. A grande virada foi a publicação de O Falcão Maltês.
No final dos anos 1920 (após a depressão), aconteceu uma guinada no perfil da ficção policial. Dashiell Hammett criou a figura do detetive durão, de humor corrosivo e moral menos rígida, o hard boiled.
Na época, Ernest Hemingway estava fazendo uma revolução na literatura “séria”: criava um estilo de histórias com passos rápidos, diálogos curtos, uso e abuso do coloquial, personagens violentos e fatalistas. Dashiel Hammett com certeza leu Hemingway, e isso influenciou todo o estilo  hard boiled.
Dashiel Hammett foi detetive de uma agência na Califórnia e começou a publicar histórias de detetive na revista Black Mask. Na época, os contos publicados nessa revista eram muito bem remunerados! Com esses contos, começou a colocar a literatura policial para ferver, tirando-a da água morna dos detetives cerebrais e colocando o detetive na rua, pronto para o que desse e viesse. Já nos primeiros contos, seus detetives eram profissionais; não tinham nada a ver com aqueles ingleses diletantes, cuja reação mais expressiva diante de um caso complicado era encher um cachimbo ou regar orquídeas. Hammett vestiu seu detetive com roupas bem comuns; enfiou-lhe um chapéu na cabeça, armou-o com um 38, obrigou-o a sair de casa e enfrentar a investigação cara a cara com a situação, o que representou uma grande virada: o detetive nas ruas.
No hard boiled, o detetive deixa de ser a máquina pensante, vai para a rua dando socos e tiros. Já não tem o narrador: atua em primeira pessoa. No entanto, não deixa de ser um dedutivo, e não se perde na luta do bem contra o mal. Um cavaleiro pelas ruas em busca de justiça!
Outra novidade que encantou todo o mundo foi a introdução da mulher inescrupulosa, perversa e fria, atuando de igual para igual com os piores sujeitos e, por comparação, os fazendo até parecer idiotas.
Hammett viveu 30 anos com Lillian Helman, que era a mulher mais feia do mundo. Mas em suas histórias, ele descrevia mulheres maravilhosas.
As histórias aconteciam nas ruas. Por isso o automóvel, outra novidade dos anos 1920, era muito importante.
Sam Spade não tinha carro, talvez porque Hammett não dirigisse. Mas, em seguida, o detetive de Chandler, Philip Marlowe, tinha um Chrysler.
Na época em foi publicado O Falcão Maltês, 1929, o grande crítico americano era Edmund Wilson, que punha a literatura policial abaixo de zero. Arrasava para valer! Apesar disso, o público se apaixonou por aquele tipo de ficção urbana, moderna, amoral, violenta e povoando de personagens novos a paisagem literária.
Além de as pessoas se apaixonarem pelas histórias, o cinema viu na fórmula policial a estrutura ideal para prender a atenção e começou a usá-las. Usou-as e as divulgou com toda a força que possuía. De repente, as pessoas ficavam ligadas em histórias onde carros rolavam pelas ribanceiras, casas eram explodidas com gente dentro, inocentes eram mortos a sangue frio.
Logo após o sucesso estrondoso de Dashiel Hammett, ele foi copiado por gente do calibre de Raymond Chandler, James Cain e Ross Macdonald, o que prova que ele criou um estilo. O que se diz é que Hammett fez primeiro, mas Chandler fez melhor!
Falcão Maltês saiu em 1929 e O Sono Eterno de Chandler saiu em 1939. Por causa dele, a literatura do século XX começou a deixar de ver o romance policial como algo dos porões e começou a convidá-la para a sala de jantar. Chandler conseguiu com que o temível Edmund Wilson dissesse que seus livros pertenciam às prateleiras “um pouco” mais sérias.
Chandler também começou na revista Black Mask, onde escreveu até que criou o detetive Philip Marlowe que, como Sam Spade, era um detetive durão e insensível. Mas Chandler conseguiu fazer dele um personagem um pouco mais profundo em termos psicológicos.
O detetive Philip Marlowe, que tinha quarenta e poucos anos, era descrito como um homem alto, de olhos cinzentos e “com um queixo de pedra”, um durão lacônico e metido a engraçado, mas também muito inteligente (tinha curso superior), introspectivo e um profundo conhecedor da natureza humana. Marlowe operava seu negócio de um homem só em Los Angeles. Era um homem movido pelo desejo de justiça e cooperava com a polícia.
Marlowe gostava de xadrez e poesia. Bebia um bocado e não temia riscos físicos nem usar violência quando necessário. Moralmente correto, encontrava em suas aventuras várias “mulheres fatais”. Chandler se esforçou em desenvolver uma forma de arte em suas histórias policiais. O Sono Eterno foi publicado quando Chandler tinha 51 anos; sua última novela, Playback, aos 70 anos. Todas as oito novelas do criador de Marlowe foram escritas nas duas últimas décadas de sua vida.
Marlowe foi interpretado no cinema pelos atores Humphrey BogartRobert MontgomeryGeorge MontgomeryRobert MitchumDick PowellElliot GouldDanny GloverJames Garner e James Caan. Ufa!
Com tudo isso, tornou-se um hard boiled inesquecível! Até a próxima!