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terça-feira, 22 de novembro de 2011

Espinosa sem o final feliz

Espinosa sem o final feliz


O policial é um gênero que, apesar de considerado pelos críticos uma literatura de entretenimento,  foi sempre aclamado no exterior pelo público e pelos editores. No Brasil, a multiplicação de textos de literatura policial de autores nacionais e a atenção dada por alguns editores a esse tipo de produção são pistas que nos levam a deduzir que a história da literatura policial brasileira ainda terá muitos capítulos, incluindo o meu detetive Alyrio Cobra, que começa a ser publicado.
Luiz Alfredo Garcia-Roza, considerado pela crítica um dos principais autores nacionais de literatura policial, teve todos os seus livros publicados pela Companhia das Letras na coleção Série Policial, que abarca obras tanto de autores estrangeiros como brasileiros. Garcia-Roza estreou na literatura de ficção em 1996, aos 60 anos de idade. Antes disso, foi professor universitário e autor de livros sobre psicanálise.
As histórias de Luiz Alfredo Garcia-Roza com seu delegado Espinosa são deliciosas. Li todos os seus livros, e recomendo. O delegado Espinosa é um policial honesto e respeitado, que vive no Bairro Peixoto em Copacabana e possui em seu apartamento uma montanha de livros sem estante. No entanto, as narrativas de Garcia-Roza não chegam a um desfecho definitivo: podemos afirmar que a ambiguidade nos desfechos é uma de suas características. Essa falta de um desvendamento claro, que geraria um veredicto capaz de delimitar a culpa de um crime em torno do criminoso faz com que suas narrativas não tenham o final feliz esperado na literatura policial. Segundo Sandra Reimão, autora do livro Literatura Policial Brasileira, suas narrativas podem ser vistas como que dialogando com clássicos da literatura policial noir.
Em O Silêncio da Chuva, romance de estreia muito premiado, um executivo é encontrado morto, sentado ao volante do próprio carro, num edifício-garagem no centro do Rio. Não há outros sinais de violência, apenas a marca de um tiro, único e definitivo: “é um morto de indiscutível compostura”. A intrincada história começa com o suicídio desse executivo, que deixa uma carta e vinte mil dólares como “presente” para que a polícia não divulgue a forma como morreu. No entanto, antes da chegada da polícia, um desocupado, por puro acaso, entra na garagem do edifício, encontra o morto, a arma, a carta e o dinheiro. Ao final da narrativa, o leitor fica sem saber o que o delegado Espinosa fará com os elementos materiais que sobraram do crime e que podem beneficiar alguns envolvidos.
Dos nove romances escritos até agora por Garcia-Roza, o detetive Espinosa só ficou de fora de Berenice procura, de 2005. Em Vento Sudoeste (1999), Gabriel, um rapaz triste e solitário, que mora com a mãe e está às vésperas de fazer 30 anos, procura o delegado Espinosa com uma  história estranhíssima. No seu último aniversário, um vidente tinha dito que ele cometeria um assassinato deliberado antes de completar 30 anos. Gabriel está assustado com o anúncio e seu aniversário se aproxima. Depois da conversa com Espinosa, a amiga que levara Gabriel para conversar com o delegado é assassinada. Há uma série de assassinatos de pessoas próximas a Gabriel. Dona Alzira, mãe do rapaz, acha que o filho está possuído pelo demônio e pede ajuda a um padre. Há uma versão final oficial para explicar os crimes, mas, no seu íntimo, o delegado Espinosa tem outra interpretação para os fatos. Para ele, o criminoso é outro, e ele diz: “o que eu acho é muito fantasioso para constar de um inquérito policial… Passado algum tempo, acho que ele vai me procurar… Não sei o que virá primeiro: a confissão ou a loucura”.
Espinosa sem saída é bastante inquietante. Nessa narrativa, Espinosa tem 43 anos e constata que está há 20 na polícia. Tem dificuldade de entender todo esse tempo e olha seu passado como se não lhe pertencesse de fato. “A mesma geografia”, reconhece, “e histórias tão distintas”. Sente-se envelhecer, declinar, e é dessa perspectiva que se dispõe a investigar a morte de um sem-teto. Ninguém, claro, se interessa pelo caso. Não se sabe o nome da vítima ou o que fazia no alto de uma ladeira, tarde da noite, sob um temporal. Ninguém o conhece, nem parece ter motivo para matá-lo. Não há suspeitos. Espinosa prossegue. E é a imaginação um tanto delirante do detetive que insiste em buscar laços entre a misteriosa morte do sem-teto e a gente moderna e chique, que mostra a rachadura social profunda do Rio de Janeiro, uma cidade de dupla personalidade, como tantos duplos que o livro traz: dois crimes (além do sem-teto, a de uma moça elegante e rica), dois nomes para um dos mortos, outros dois para uma das suspeitas, ambiguidades sexuais que opõem vertiginosos prazeres clandestinos à repetição do universo familiar. Sem contar, claro, a duplicidade do próprio detetive, cada vez mais distante do mundo em que trabalha, cada vez mais diferente das pessoas que o rodeiam.
Em seu último romance, Céu de Origamis, Espinosa está afastado do cargo, pois se recupera de um atentado relatado no livro anterior. Inicia de forma extraoficial a investigação sobre o estranho desaparecimento de um dentista. Na metade do livro, reassume o cargo. A história se sustenta no conjunto dos eventos que apresenta e na sólida caracterização do detetive, agora ainda mais reflexivo. Espinosa consegue construir raciocínios rigorosos e, ao mesmo tempo, flana pela cidade e pelas ideias, se imiscui nas tramas e se expõe.
Curioso é notar a construção gradativa de vínculos familiares do detetive. A aproximação com o filho e a manutenção da mesma namorada dos romances anteriores revela o amadurecimento e, melhor, o envelhecimento do personagem. É em Uma Janela em Copacabana que se percebe mais claramente o diálogo com a literatura noir, a começar pela capa do livro: Copacabana, Rio de Janeiro. Dois policiais são executados em curto espaço de tempo. Suas mortes têm muito em comum. Ambas as vítimas eram tiras de segundo escalão, com carreiras medíocres. Percorrendo as ruas de sua geografia predileta, entre os bairros do Leme e de Copacabana, Espinosa vai se deparar com outras mortes e com uma mulher enigmática e insinuante, casada com um figurão da área econômica do governo federal. Esta mulher observa a vida pela sua janela. Na foto da capa, temos parte da frente de um edifício com seis janelas iluminadas. Na janela central se vê uma moça provavelmente lendo, nas demais janelas, apenas venezianas e cortinas por detrás das quais luzes acesas indicam sinais de presença humana. A foto redobra e ressoa o título. O ângulo indica que o fotógrafo estaria em um apartamento do prédio em frente exercendo sua atividade de observador privilegiado e oculto da vida alheia. É um diálogo com o clássico do cinema de Hitchcock, “Janela Indiscreta”, de 1954, estrelado por James Stewart e Grace Kelly.
Espinosa ilustra a linha tantas vezes defendida pelo argentino Ricardo Piglia: a de que a narrativa policial é, sobretudo, uma crônica e uma denúncia social. Talvez por isso Garcia-Roza associe, pela boca de Espinosa, a realidade à ficção, sem se preocupar com o final feliz.

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