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terça-feira, 8 de novembro de 2011

A fórmula engajada

A fórmula engajada

Não gosto de literatura engajada. Com raras exceções, são leituras longas e chatas. É preciso estar muito enfronhada no mesmo grupo para ver graça no texto e sentir prazer na leitura.
Um dos poucos engajadíssimos de que gosto muito é Manuel Vázquez Montalbán. Com certeza ele possui motivos de sobra para ser engajado! Seu pai, Evaristo Vázquez, republicano exilado na França, entrou clandestinamente na Espanha para conhecer o filho recém-nascido e foi preso. Enquanto estudava jornalismo, Montalbán trabalhou numa casa funerária. Estudou Filosofia e Letras na Universidade Autónoma de Barcelona. Em 1960, foi chefe nacional de propaganda do Servicio Universitário del Trabajo e depois colaborador interno da imprensa do Movimiento. Em 1961 se casou com Ana Sallés. Em seguida, passou um ano e meio na prisão por ter participado de uma manifestação. Ali escreveu o seu ensaio “Informe sobre la información” (1963). Entre 1963 e 1969 foi-lhe proibido o acesso aos meios de comunicação e foi-lhe retirado o passaporte até 1972. Participou na revista CAU (1970-74) e foi colaborador fixo da Triunfo e das revistas Mundo Obrero, La Calle e Interviú. Em 1977 ingressou no Comité Central do Partido Socialista Unificado da Catalunha.
Engajamento à parte, Montalbán nasceu em Barcelona, na Espanha, em 1939, e morreu em Bangkok, em 2003, de ataque cardíaco, no aeroporto. Foi um dos mais fecundos escritores espanhóis, com uma produção tão variada quanto premiada de mais de cinquenta romances, ensaios, biografias e reportagens. Escreveu ainda livros de poesia e a Autobiografia do General Franco (1992). No meio disso tudo, criou o detetive Pepe Carvalho, protagonista de uma série policial, no mínimo, fascinante.
Escrever sobre Pepe é um exercício de contradições. Pepe Carvalho é um detetive particular, ex-comunista, que mora em Barcelona. Além de ex-comunista, é também ex-agente da CIA. É uma surpresa Pepe ter trabalhado para a CIA, sendo quem é, ainda mais se considerarmos o autor do personagem. Outra contradição é que ele é um homem de uma cultura invejável, que queima livros em sua lareira!
Liberado da CIA, Pepe retorna à Espanha e começa a queimar livros. O que significa queimar livros? Seria uma metáfora para a libertação dos antigos mestres, ou, simplesmente, o ato de ignorar o conhecimento acumulado pela humanidade? A queima de livros foi sempre uma forma de o povo dominador reprimir a história do dominado. O Index (livros proibidos) do cristianismo é um exemplo disso, a história está recheada desse tipo de comportamento. No caso de Pepe, por vezes me parece um deboche em relação a tudo o que foi pensado e escrito e não serviu para nada!
A exemplo de Nero Wolf, que tinha um cozinheiro fantástico, Pepe também tem Biscuter, que não só cozinha, como explica as receitas e é seu único amigo e companheiro. Ambos são capazes de percorrer quilômetros somente para apreciar um determinado prato em um restaurante que poucos conhecem, mas cujo cozinheiro ou cozinheira são excelentes. A paixão gastronômica de Carvalho e Biscuter reflete a do autor, que em cada romance apaixonado inclui descrições culinárias dos pratos mais variados.
A companheira de Pepe é uma prostituta. Eles se dão muito bem, mesmo ela descrevendo o que faz com seus clientes. Aliás, ela trata sua profissão e descreve como atua com seus clientes como se descrevesse uma lavagem de roupa ou o trabalho em uma loja.
Resumi as contradições? Não, claro que não. Elas estão estampadas em cada livro, em cada dúvida, em cada solução de caso. Pepe Carvalho assume o desencanto e nos mostra uma Espanha em transição. E não somente a Espanha, mas o mundo que vivemos, a América Latina pós-ditaduras, o leste europeu pós-União Soviética, e também nos transmite uma ternura pelos vários lugares por onde Pepe (ou Montalban) passou, pelas cidades, pelos restaurantes, pelos bares, e, principalmente, pela comida.
Pepe Carvalho tem uma personalidade rica, complexa e contraditória. Para descrever as suas aventuras, e, em muitos casos, criticar seu país, o autor usa a situação política e cultural da sociedade espanhola durante a última metade do século 20.
A saga de Carvalho chegou ao fim com a publicação póstuma de Milênio, em que o detetive, acompanhado por seu parceiro inseparável Biscuter, impõe-se uma última aventura na forma de viagem, que acaba sendo um olhar amargo e melancólico sobre a situação sociopolítica do mundo e a passagem do tempo. Pepe se sente perplexo ao descobrir que está sendo acusado de assassinato pela polícia de Barcelona, e não lhe resta outra saída a não ser viajar (acompanhado do inseparável Biscuter) para Gênova e, de lá, seguir em uma fuga mirabolante ao redor do mundo.
Viajando sob os nomes de Bouvard e Pécuchet, personagens da obra de Gustave Flaubert, o detetive e seu assistente tentam ficar um passo à frente de seus algozes, enquanto procuram novas companhias para despistar as autoridades. Só que uma dessas companhias, que atende pelo nome de madame Lissieux (com quem Biscuter parece se entender muito bem), desaparece pouco depois de os freios do carro de Carvalho falharem misteriosamente. Conforme se intensifica a perseguição, Carvalho e Biscuter vão a Israel, Turquia, Cabul, Argentina e até ao Brasil, para resolver o enigma detetivesco. Milênio não é apenas uma aventura ao redor do globo, é também um giro gastronômico, político e sentimental pelo mundo contemporâneo.
Entre as muitas aventuras que Pepe Carvalho protagonizou está também O Quinteto de Buenos Aires. Menciono-a por ser uma história ambientada em Buenos Aires, vinte anos depois do golpe militar de 1976. Os porões da ditadura argentina voltam a se agitar quando Raúl Tourón, primo de Carvalho, desaparece na cidade ao tentar acertar contas com o passado. Nesse acerto de contas, sua filha foi sequestrada e sua mulher, morta. Em busca do primo desaparecido, o detetive Pepe Carvalho mergulha no rescaldo da ditadura.
Como podemos ver, Montalbán usou o apaixonante detetive Pepe Carvalho e a fórmula policial para fazer uma ótima literatura!

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