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terça-feira, 29 de novembro de 2011

Modernos e modernistas

Modernos e modernistas

Nos últimos anos houve um aumento considerável de textos de literatura policial escrita por autores nacionais. Acredito que cada um deles merece uma crônica em separado. Hoje vou dar algumas rápidas pinceladas na modernidade e retornar um pouco no tempo para revelar uma curiosidade do gênero policial.
Entre os autores que estão publicando com sucesso temos Joaquim Nogueira, delegado de polícia aposentado que transpõe para a literatura suas experiências profissionais. Venício, seu protagonista, é um tira durão e honesto. Usa o telefone da vizinha e come arroz com feijão, bife e uma saladinha no botequim da esquina onde o dono vende fiado. Dirige um fusca velho e resolve os casos.
Nelson Motta criou o noir baiano, com o tranquilo investigador particular Augustão que anda de sandálias e bermudas e não vive sem sexo, drogas e afro-jazz. Jô Soares também usou a fórmula policial de uma forma lúdica em seus romances, começando pelo Xandô de Baker Street. Tony Belloto desceu do palco dos Titãs e criou o detetive Bellini, que já se deparou com o demônio, a esfinge e os espíritos.
Contratado por um bandido, o detetive Alyrio Cobra, criação desta que vos fala, viveu uma investigação interessante, que sairá logo no começo do ano pela KBR em ebook com o nome de Peças Fragilizadas (a versão em papel virá um pouco mais tarde, em grande estilo). Nos momentos em que ele se sente sem rumo nas investigações, Alyrio anda pelo centro velho de São Paulo, sobe ao terraço do edifício Banespa e observa a atordoante metrópole.
Voltando um pouco no tempo, existiu Patrícia Rehder Galvão, ou Pagu, como ficou conhecida. Acho muito curioso que uma mulher militante do partido comunista tenha se rendido à fórmula policial! Mas quem foi Patrícia Rehder Galvão, ou Pagu, como ficou conhecida? Com certeza uma mulher de inúmeros matizes, versátil, inteligente, corajosa e inquieta. Começou como jornalista (com 15 anos), tornou-se ativista política, autora de romances políticos e colaboradora de movimentos intelectuais. Militante comunista, foi a primeira mulher a ser presa no Brasil por motivações políticas.
Embora seja muito conhecida, sua vida merece ser ligeiramente relembrada.
Nasceu em São João da Boa Vista em 9 de junho de 1910. Bem antes de virar Pagu, apelido que lhe foi dado pelo poeta Raul Bopp, já era uma mulher avançada para os padrões da época. Cometia “extravagâncias” como fumar na rua, usar blusas transparentes, manter os cabelos cortados e dizer palavrões. Tinha muitos amantes e causava polêmica na sociedade. Esse comportamento não era nada compatível com sua origem familiar, pois era de família tradicional e conservadora.
Embora tenha se tornado musa dos modernistas, Pagu não participou da Semana de Arte Moderna. Tinha apenas 12 anos em 1922, quando a Semana se realizou. Entretanto, com 18 anos, mal completara o Curso na Escola Normal da Capital (São Paulo), integrou-se em 1928 ao movimento antropofágico/modernista, sob a influência de Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral.
Em 1930, promoveu mais um escândalo para a sociedade conservadora de então: Oswald separou-se de Tarsila e casou-se com ela no Cemitério da Consolação. Eram amantes desde a época em que Oswald era casado. No mesmo ano, nasceu Rudá de Andrade, segundo filho de Oswald e primeiro de Pagu.
Ativa no partido comunista, Pagu foi presa pela polícia política de Vargas ao participar da organização de uma greve de estivadores em Santos. Ao sair da prisão, largou o filho e o marido e foi para a Europa. Viajou pelo mundo. Filiou-se ao partido comunista francês.
Foi presa em Paris como comunista estrangeira, com identidade falsa, e teve que ser repatriada para o Brasil. Separou-se de Oswald depois de brigas sensacionais. Foi presa novamente. Ao sair da prisão, em 1940, rompeu com o Partido, passando a defender um socialismo de linha trotskista.
Casou-se pela segunda vez com o jornalista Geraldo Ferraz. Seu segundo filho, Geraldo Galvão Ferraz, nasceu em 18 de junho de 1941. Nessa mesma época viajou à China e obteve as primeiras sementes de soja que foram introduzidas no Brasil. Foi uma mulher forte e revolucionária, que deixou marcas profundas na nossa história.
Ao ser acometida por um câncer, viajou para Paris a fim de se submeter a uma cirurgia, sem resultados positivos. Decepcionada e desesperada por estar doente, Patrícia tentou o suicídio. Voltou ao Brasil e faleceu no dia 12 de dezembro de 1962.
É curioso que uma mulher com esse histórico de vida tenha se rendido à fórmula policial. Sob o pseudônimo de King Shelter, em apenas seis meses — de junho a dezembro de 1944 —, escreveu contos policiais para a revista Detective, dirigida por Nelson Rodrigues, que publicava autores de peso.
Da mesma maneira que surgiu, King Shelter desapareceu. Os nove contos escritos para a Detective, um dos mais bem-sucedidos exemplos da pulp fiction no Brasil, jamais foram reeditados. Mas cinquenta e quatro anos depois King Shelter reapareceu, e, como em um bom enredo policial, sua identidade foi finalmente revelada. A redescoberta dos contos de Pagu seguiu um roteiro que poderia servir de ponto de partida para mais uma narrativa policial.
Geraldo Galvão Ferraz, filho de Pagu e fã das revistas policiais, encontrou em um sebo paulista uma coleção da Detective publicada no Brasil. Ao examinar com cuidado a nova aquisição em busca de um conto de Dashiell Hammett, descobriu uma história escrita por King Shelter. O nome jogou uma luz nas memórias de Ferraz: anos antes, ouvira uma referência ao pseudônimo em uma conversa com o pai, Geraldo Ferraz. “Ele havia me falado sobre King Shelter e chegou a me mostrar uma edição da Detective com um dos contos. Na época, não dei importância, nem sequer li. Depois, perdi a revista e o contato com Shelter”.
A partir do reencontro, Geraldo iniciou uma pesquisa até encontrar os nove contos. A descoberta dos contos policiais de Pagu mostrou a ele um aspecto desconhecido da mãe. “Há o aspecto curioso, de descobrir que uma mulher como ela, vista como libertária e engajada politicamente, escrevia contos policiais. Mas, ao ler o material, comecei a perceber que, além da curiosidade, ela tinha uma qualidade literária dentro do gênero e da época”.
Geraldo reuniu os contos e os publicou em Safra Macabra (Livraria José Olympio Editora, 1998). O detetive Ducrot, personagem criada por Pagu, ops!, por King Shelter, é descrito como admirador da lógica e do bom senso, mas às vezes, parte para a ação, atira e briga. “Ele é elegante e refinado, parecia muito um estudante boêmio com seu chapéu largo, a echarpe colorida, os olhos imprecisos, ora gaiatos, ora tristes” (“A mão viva da morta”). Em “O Dinheiro dos Mutilados”, a personagem Violeta Cottot é uma jovem francesa que, sob o pseudônimo “Mossidora”, escreve as mais perfeitas novelas policiais contemporâneas para uma revista chamada Delinquente, numa clara referência à sua própria condição, mas em tom jocoso.
Em Safra Macabra, os contos foram publicados em ordem cronológica, o que permite analisar a evolução da qualidade dos textos. À medida que publicava na revista Detective, Pagu se firmava no gênero, dominando cada vez melhor a técnica e a fórmula.

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